Tschznnnzah!tsss….

 

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*Rosal

 

“Tschznnnzah!tsss…” eu ouvi e fiquei buscando de onde saía o ruído. Debaixo da mesa? Mas poderia ser? Havia o meu mocassim recém colocado nos pés e em sua beirada uma faísca cor de gelo a se extinguir. Fedor de queimado principiava no ar. Era um fio com remendo de fita, do ventilador, e eu pisei certinho nele.

 

Mesmo antes de identificar o ocorrido insurgia-se em mim um sentimento bizarro como o do roedor alheio à serpente que passa e após, por instinto, a percebe sumir, já sem risco ou violência, mas os seus nervos inflamados palpitam feito uma reverberação da morte. Depois (o que é curioso) pensei mais no mocassim do que na morte – parece-me que essa senhora é sempre abrupta, até para deixar-se ir. Um instante se passa e noto que esqueci o carregador do celular no trabalho.

 

Um aiai, 3%, 1%, 0%, mas não faz mal, não, ainda que houvesse uma tarde restante, uma noite e as possibilidades do imprevisto, que normalmente prevemos. No entanto, nada disso me pareceu mais existir, pois o banal fora de nosso alcance vai perecendo. Estava apenas o som do mundo que é o quarto, sem mais distorções, e tão significativo quanto qualquer coisa desde que tenhamos atenção sobre ela. Diante do silêncio nós percebemos.

21.02.20.

*Gustavo Muniz Barros Rosal Benvindo, estudante de Direito no campus da UESPI em Parnaíba, cronista, contista e poeta.

Rostos no canto da memória.

 

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*Rosal. 

Lendas, medos infantis, caricaturas surgem de cada época, como tudo que se renova. Às cidades são dadas as suas figuras de carisma que instigam o imaginário da população. Vejo, por exemplo, vez ou outra, um sujeitinho magro, a pele morena, rosto feliz, duro, a correr as ruas da Rodoviária ou da av. São Sebastião, com o ar de quem procura algo há tanto tempo que já se esqueceu que procura. Traz, aos pés, gastos sapatos de borracha, como os dos funcionários de serviços manuais; sapatos sóbrios, feito um bom disfarce.

 

E há um senior de passo objetivo. Está constantemente a andar e sempre me parece que com um propósito alto às proporções, impressionantemente prático e decisivo, senão, senta-se em um café nas proximidades do Mirante, dispondo sua agenda de varejo e uma pasta de documentos confusos sobre a mesa. Tem por apêndice um celular do começo do século que o braço esquerdo lhe arqueia ao ouvido. Vestes de quem recebe más notícias e as costas corcundas, como alguns homens nervosos.

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É singularmente grave, faz divertir-se a minha imaginação e se transforma em um velho boiardo a esquadrinhar o que lhe restou de direitos, forte, em tempos de mudança. Personagens de Kafka e seus trejeitos de sonhos. O elo que os une é o estar alheio sem estar, um oculto desígnio, como uma membrana que talvez se deixe transigir e que conduz à memória. Nunca lhes ouvi palavra, mas um estranho magnetismo se abate sobre mim – neste instante, o vagalume rodeia um espectro luminescente por trás de nossas atenções. Me recordarei desses homens ou do vagalume que criei? Quem me recordará?

24.01.20.

*Gustavo Muniz Barros Rosal Benvindo, estudante de Direito, campus da UESPI em Parnaíba, poeta, cronista e contista.