DIÁRIO – 27/03/2020

serra2bcampo2bmaior

DIÁRIO

Elmar Carvalho

27/03/2020

            Ontem de manhã recebi um telefonema do amigo Fabrício Amorim Leite. Além de advogado do Banco do Nordeste, ele é interessado em literatura e cultiva a crônica, e uma boa leitura. Sem radicalismo e intransigências, é um estudioso da doutrina de Kardec. Mas, principalmente, é um bom cidadão, amante do bem e da generosidade.

Considero-o como sendo um dos meus poucos leitores. Temos tido algumas boas conversas, quando caminhamos juntos, algumas vezes, na Raul Lopes. Ligou-me para me dar uma notícia jurídica, em assunto de meu particular interesse, mas também para me incutir coragem nesta quarentena coronarina.

Contou-me que num período em que esteve licenciado, em tratamento médico exitoso, a oncologista Vanessa Castelo Branco lhe estimulou a fazer caminhadas dentro de casa, não para que se tornasse um atleta ou fortão musculoso, mas para ter confiança e bem-estar psicológico. Disse-lhe que passaria a seguir o conselho de doutora Vanessa, neste período de isolamento social. Aconselho o leitor a que também o siga.

Quando ele falou na palavra confiança, lembrei-me de um episódio do final de minha juventude. Estava num dos mais altos platôs da Serra Azul, ou ainda Serra de Santo Antônio, também chamada com certo ufanismo de Serra Grande de Campo Maior, quando veio uma rápida e inesperada chuva. Cessado o aguaceiro, o nosso guia, de forma algo imprudente, nos incentivou a descermos a encosta até um ressalto que havia. Ele, o Zé Francisco Marques, eu e meu irmão Antônio José descemos.

Porém, na subida tive medo, ainda mais porque a terra estava um tanto escorregadia e eu estava calçando apenas uma chinela havaiana. Uma queda poderia ser fatal. No entanto, o guia, de forma calma e decidida, disse-me para que me segurasse num tenro arbusto que havia, e, vendo o receio estampado em meus olhos, acrescentou: “A planta é apenas para lhe dar coragem”. Talvez em lugar de coragem, tenha dito confiança, já não recordo com exatidão.

O certo é que adquiri coragem e confiança em mim mesmo e executei a íngreme escalada. Agora, nesta reclusão da covid-19, digo a mim mesmo e ao leitor: Tenhamos Fé em Deus, meditemos, façamos nossos exercícios e caminhadas em casa, e oremos, que tudo vai passar, como de resto tudo passa.

Contudo, para sempre guardemos as lições recebidas, e nos esforcemos na busca do autoaperfeiçoamento, nos tornando um ser humano “revisto e melhorado”.

Desumanos Tempos

01

Quando não mais restar amor nenhum
E o mundo de ódio for estabelecido,
Os anos de escuridão nos farão relembrar
Do tempo em que os valores humanos
Ainda possuíam certa relevância.

Quando não mais restar amor nenhum
E o cristianismo radical for a lei,
Os castigos aos diferentes farão lamentar
Toda uma massa que hoje jaz moribunda
Por promessas nascidas da ignorância

Quando não mais restar amor nenhum
E o vil metal for definitivamente adorado
O brilho intenso e cruel, nos fará enxergar
Os milhares de escravos acorrentados
Presos pelo vicio, destinados à subserviência

Quando não mais restar amor nenhum
E a escolha das formas de se apaixonar for restrita
As perseguições aos hereges farão sangrar
Até mesmo aquele que hoje com os olhos condena
Pois também verá dos seus, a queimar por desobediência

Quando não mais restar amor nenhum
E o ensino novamente nos tornar zumbis,
O angustiante som da palmatória fará clamar
Por dias em que o dialogo seja de novo uma opção
Prevalecendo o lúdico e o afeto, ao invés da violência

Quando não mais restar amor nenhum
Que Deus então nos perdoe,
Pelo esquecimento de tudo que um dia ele pregou.

Claucio Ciarlini (2018)

SHORT STORIES

SOLTA…SOLTA…SOLTA...
Antonio Gallas

calcinha

Mal o prefeito Mão Santa determinou  através de um decreto a abertura  do comércio no dia 27 de março do ano de 2020 que o Apolinário começou suas estrepolias culminando em sua prisão no final da manhã e início da tarde.
Há mais ou menos uma semana o comércio de Parnaíba havia fechado suas portas por conta de um decreto governamental que,  segundo o governador do Estado, estaria cumprindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde – OMS, como forma de evitar a proliferação da Convid 19,  conhecido como Coronavírus e que muito mal estava fazendo à população do mundo inteiro e que, se tivesse grandes proporções no Brasil causaria um desastre muito maior ao país, não apenas à economia, como também aos demais setores da nação.
Apolinário que nunca trabalhou na vida, vivia de biscates, de enganar as pessoas,  e nos descuidos dos comerciantes em pequenos furtos.
Não tinha morada certa, mas atualmente estava no chamado Carandiru, no Bairro Mendonça Clarck nas proximidades do Mercado da  Quarenta. Por suas investidas já era bastante conhecido nos distritos policiais e por isso ganhou o cognome de Mala.
– Lá vem o Mala de novo, dizia o delegado do plantão. –  O que foi dessa vez, Mala?
Pois bem. Tão logo percebeu que algumas lojas começaram abrir suas portas preparou-se para o seu “trabalho” pois afinal há   uma semana que ele  não fazia nada, não ia ao restaurante popular, ao “troca-troca” etc… Ficar  entocado  o dia inteiro, deitado  no chão quente e sujo do Mercado da Quarenta não era negócio pra ele.
Na manhã dessa sexta-feira dia 27 de março de 2020 o Mala saiu disposto a arranjar uns trocados que dessem para, pelo menos,  poder tomar uma pinga num dos botecos em frente à parada das Vans na Vala da Quarenta e comprar um pó para cheirar à noite e assim poder dormir, sonhar e viajar sob o efeito da droga.
Dirigiu-se ao Banco do Brasil e não conseguiu nada. Caminhou então rumo às lojas da rua Almirante Gervásio Sampaio onde existem lojas de variedades, de confecções masculinas e femininas, lojas de ferragens, sapatarias e tudo mais.
Adentrou em uma loja de artigos femininos e ao primeiro descuido do proprietário surrupiou uma calcinha, peça íntima do vestuário feminino e  arribou na carreira. Só que ele não contava que nesse momento um policial militar fosse passando na porta da loja para azar seu.
Na carreira apressado  esbarrou no cabo Êta que por coincidência , ou para o seu azar passava na porta da loja.
– Espera aí ô rapaz! Tá pensando o que?
À esta altura seu Alonso, proprietário da loja gritava: – ele roubou uma peça da minha loja.
– É verdade. Roubei uma calcinha para fazer uma máscara e me proteger do Coronavirus, pois  estou sem dinheiro para comprar na farmácia.
– Que máscara que nada, disse o cabo Êta. Vamos já para delegacia.
– Por favor, não me prenda. Eu tô doente. Acho que peguei o Coronavírus.
O policial não quis saber de conversa. Chamou o camboarão e levou apolinário para a Central de Flagrantes.
O delegado ao ver Mala chegar mais uma vez na Central de Flagrantes coçou o quengo e sorriu.
Apolinário  sentou-se em frente à mesa do delegado e enquanto o escrivão preparava o computador para promover o flagrante Mala desembestou-se a tossir e espirrar…
O delegado  assustado, tampando o nariz com a mão esquerda e com a direto fazendo o tradicional sinal de quem manda embora exclamou: “solta…solta… solta!
tosse

DIÁRIO – 26/03/2020

coronavirus

DIÁRIO

Elmar Carvalho

26/03/2020

Dizem os ditados que gato escaldado de água fria tem medo, e que cachorro picado por cobra tem medo de linguiça.

Como caiu o acesso dos internautas que frequentavam minhas postagens, me é lícito perguntar: será se nestes dias de quarentena “coronarina” (e não, claro, coronariana), por causa de certo vírus coroado, o leitor de plataformas virtuais passou a ter medo de “pegar” virose informática?

DIÁRIO – 25/03/2020

quadro-jesus-bom-pastor-sacra-pintura-oleo-stela-50x70cm-d_nq_np_486101-mlb20267689885_032015-f

DIÁRIO

Elmar Carvalho

25/03/2020

Não sendo um teólogo e nem um religioso, mas tendo a minha religiosidade cristã, e aproveitando este período de quarentena a que quase todos estamos submetidos, fiz algumas reflexões sobre o impacto do novo coronavírus na humanidade.

De início, acredito que essa covid-19 aconteceu porque Deus permitiu, como de resto creio que nada acontece por acaso, até porque, de fato, não existe o que chamamos acaso; não existe uma entidade, física ou espiritual, com esse nome, que tenha o condão de fazer acontecer ou não acontecer o que quer que seja, e que tenha uma existência concreta, real.

O que existe é uma sincronização infinita de causas e efeitos. Quando não temos uma explicação para determinado fato ou acontecimento, dizemos que foi por acaso ou que houve uma coincidência. Aliás, dizem que o acaso é o nome que se dá aos momentos em que Deus passeia incógnito.

Na mecânica quântica, em que tudo parece estar interconectado, há fatos e acontecimentos estranhos e surpreendentes, inclusive o princípio da incerteza. Será se essas estranhezas e incertezas, inacessíveis ao atual conhecimento humano, à falta de outro nome, não seria o “espaço” que Deus reservou para fazer as suas sutis intervenções ou milagres, que de tão discretos quase ninguém percebe, ou mesmo deseja perceber?

Observo que nas últimas décadas, a ciência e a tecnologia têm feito muitas descobertas, invenções e aperfeiçoamentos tecnológicos. Mas, em contrapartida, o homem em sua ganância, egoísmo, consumismo e hedonismo tem feito muita loucura, inclusive comprometendo o equilíbrio ecológico e o chamado desenvolvimento sustentável.

Com isso, muitos recursos naturais entram em colapso, desastres naturais já se esboçam e o efeito estufa é uma lamentável realidade, que já provoca modificações e catástrofes climáticas. Muitos crimes, cometidos por causa do egoísmo e da ganância, tais como estupros, assaltos, mortes por encomenda, latrocínios tomam proporções nunca dantes vistas.

As pessoas “convivem” mais com os aparelhos eletrônicos (som, celulares, tv, computadores, jogos etc.), do que com o seu semelhante. Esses aparelhos são ligados a partir do momento em que o dono mal acorda. Não existe tempo para o silêncio, para a reflexão, para a leitura ou para uma simples conversa. Mesmo num restaurante poucos conversam. Muitos preferem curtir mais uma rede social do que uma rede de verdade. E muitos só adormecem se o aparelho de som estiver ligado.

O ser humano andava numa aceleração constante, cada vez em busca de maior velocidade, em constante situação de estresse e ansiedade. Agora, foi compelido a pisar no freio.

Tivemos duas guerras mundiais e uma infinidade de outras guerras ao longo de milênios. Temos e tivemos guerras e guerrilhas por motivos étnicos, religiosos, econômicos e ideológicos. Mas a meu ver nada justifica uma guerra, exceto a defesa. Para mim uma guerra não tem nenhum sentido, tais os malefícios e sofrimentos que provoca nas partes em luta e mesmo no seio da sociedade civil.

Contudo, qualquer guerra é iniciada pelo homem e pode ser paralisada pelo homem; porém, o mesmo não se pode dizer da covid-19. Os bunkers e as casamatas protegem as altas autoridades e os generais, todavia, o novo coronavírus não respeita autoridades, generais, valentões, tamanho, cor de pele e nem idade. Todos estamos no mesmo barco, e o mesmo barco se chama planeta Terra. E todos seremos afetados, de uma forma ou de outra, através do confinamento e do medo, ou da infecção de um parente ou amigo, por um pedacinho de molécula invisível e tão diminuto. Dependemos uns dos outros, e estamos todos interconectados, em permanente interação, influenciando e sendo influenciados.

Acho oportuno transcrever o que disse John Donne, velho poeta inglês: “Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”

Creio que, como o homem não aprendeu as lições da História e das guerras, e não escutou as advertências e pregação de Cristo, veio agora essa praga para nos sacudir em nossa zona de conforto, para nos afastar do egoísmo e de todas as formas de egolatria. Veio para nos desacelerar, para nos fazer refletir, para que nos voltemos mais para Deus, e não para o hedonismo, futilidades, “espertezas” e culto ao corpo, que de resto é frágil, vulnerável e mortal. Mas essa pandemia, suponho, é apenas um “cascudo” ou cocre, apenas uma forte admoestação. Talvez, caso não aprendamos a lição, uma segunda onda venha com uma letalidade muito maior. Mas não sou profeta, muito menos do apocalipse; sou apenas um observador dos sinais. E os sinais estão no ar.

Menos casamata, mais “casamáter”, mais hospitais, mais saúde, mais amor e mais fraternidade e caridade. Oremos e vigiemos, como disse Jesus. Tenhamos Esperança e Fé. Afinal, Deus é o construtor e piloto desta nave Terra, e ela há de seguir a sua rota perfeita, consoante a Sua vontade.

Que o homem se humanize, se aperfeiçoando, e se torne realmente humano.

Os três degraus.

 

ostres1

 

*Pádua Marques. 

Quando a canoa tocou o bico da proa no barranco do porto Salgado naquele meio de dia, 16 de setembro de 1939, os três rapazinhos ainda impressionados pelo movimento dos armazéns e lojas, mal perceberam mais longe a torre da igreja de Nossa Senhora da Graça e as outras casas comerciais, embora naquela hora fosse hora de almoço. José Justino, Moisés e Aurélio estavam chegando em Parnaíba, vindos do Brejo dos Anapurus, no Maranhão.

Tinham os dois primeiros, dezessete anos e o outro, dezesseis mal completados em abril. José de Ribamar Justino vinha atrás de um emprego no comércio, no Moraes, em algum dos armazéns do porto e tinha fé que seria mais fácil porque sabia assinar o nome e fazer alguma conta de cabeça. Mas vinha triste. Sua mãe havia morrido pouco mais de dois anos atrás mordida por uma cobra quando catava babaçu numa porção de terras abandonadas e ele ficou sozinho no mundo. Dos três era o único que tinha algum sinal de conhecer alguém naquela cidade.

E essa pessoa era sia Vicença, conhecida de sua finada mãe nos Anapurus. Vicença morava nos Tucuns, perto da lagoa do Bebedouro numa casa miúda, pintada de branco, coberta de palha, de dois quartos, chão de tijolos e uma janela dando pra rua. Tinha uma filha, cega de um olho, moça velha de uns trinta e poucos anos, muito feia, que pouco falava. A protetora de José Ribamar Justino era viúva de um barbeiro, Pedro Teodoro, que havia morrido enfraquecido, tuberculoso e no meio da rua em Parnaíba há dois anos.

ostres2

 

Uma coisa horrível de se lembrar. Caiu soltando sangue pela boca em frente à loja de seu Antonio Tomás, perto do Mercado.   E foi sia Vicença quem veio de casa naquele dia, naquele terror de sol, buscar o rapaz e seus companheiros no cais do porto Salgado e lhes dar acomodação.

Vicença se admirou do tamanho que estava o filho da finada comadre Domingas e tratou logo de procurar ver seus companheiros de viagem. Eram os dois, Moisés e Aurélio muito novos e acanhados. Mas José Ribamar Justino foi quebrando a vergonha dos companheiros dizendo que eles agora estavam na Parnaíba e tinham que criar alma nova! A viúva foi logo procurando saber o nome dos meninos, a idade, se tinham muita coisa na bagagem, pois a viagem até os Tucuns seria longa.

E assim foram os quatro entrando de Parnaíba adentro e olhando aquele movimento no início da tarde. No outro dia ela iria atrás de alguma colocação em algum armazém ou casa de gente rica dando sinal de que eram os três rapazinhos pessoas de sua confiança e quase seus filhos. Pelo caminho ia apontando esse ou aquele comércio, loja, barbearia, o cinema, Éden, açougue, oficina de sapateiro. Um homem dando de comer pra seu animal de carroça.

brinco3

Aqui uma mulher estendia na porta de casa um pano e em cima desse pano, camarão pra secar. Mais ali na frente um homem consertava uma rede de pesca e mais adiante umas meninas jogavam pedrinhas no chão de uma calçada. No largo da igreja de Nossa Senhora da Graça e tendo a igreja do Rosário, a dos pretos do outro lado, se benzeu e fez uma prece batendo os beiços.

Pedia por eles, aqueles três viventes em início de vida, principalmente José Justino, filho de sua conhecida. Mas também pelos outros dois, Moisés e Aurélio. Eles caminhavam em fila e cada um trazendo a pouca bagagem. Duas mudas de roupas, camisas e calças de botão, cuecas, espelho, um pão de sabonete e uma toalha de pano, copo de alumínio pra beber água, um pente de chifre, uma rede e um lençol ordinários. Era tudo o que tinham e o que conseguiram juntar com a ajuda de parentes pra aquela viagem.

Mas enfim chegaram na casa dos Tucuns e a moça feia, de nome Maria da Luz, veio abrir a porta. Sia Vicença não se acanhou e tratou de oferecer todas as acomodações da casa pequena aos três rapazinhos. Ficariam alojados no quarto da frente. Era pequeno, mas arejado e de frente pra rua. Correu até a cozinha a colocar uma chaleira no fogo pra fazer um café pra que logo em seguida procurasse alguma coisa pra os agora cinco dentro de casa comessem.

A moça velha, Maria da Luz, pouco deu sentido aos três rapazinhos e de pouca fala até mesmo com a mãe, foi ajudando aqui e ali com alguma tarefa. Mas no outro dia Vicença saiu com os três pra Parnaíba procurar colocação de serviço. A igreja de São Sebastião, nos Campos, estava em obras. Era grande o movimento de pedreiros, serventes, carpinteiros, mestres. Foi lá e pediu que queria falar com o encarregado. O homem veio e pediu que esperasse um instante. Não demorou muito e veio.

A viúva foi logo fazendo a propaganda de Moisés. Disse quem era ele e tudo o mais, menino de dezessete anos e bem fornido, moreno, de cabelo liso, não bebia, não fumava, ainda não tinha cegueira por rapariga e estava doido pra trabalhar! Quanto era o dia de serviço? Tudo acertado. Moisés ficou ali mesmo já traçando massa e carregando tijolos. Saíram os três à procura de outro serviço, dessa vez pra Aureliano, o mais novo. E não demorou muito, passaram em frente ao Mercado Central e viram umas bancas de frutas.

Vicença reconheceu o dono, seu Corinto, irmão de um conhecido freguês de seu finado marido, de nome Quincas Magalhães, dono de uma loja de frutas e doces. Puxou conversa, comprou umas bananas e ofereceu o segundo rapaz pra emprego. Deu certo de novo. O serviço era ficar gritando o preço das mangas, laranjas, bananas, sapotis, rapadura, mel de abelha e tudo o mais. Não podia ser acanhado! Com o tempo era bom ir aprendendo a fazer conta! Freguês chegasse e era pra encostar e ir oferecendo tudo e sendo gentil. Aparecia muita gente rica! Pagamento no final do dia. Nada mal pra quem nunca havia pegado em um vintém!

Era outro dia. Agora era o protegido e filho de comadre Domingas, que uma cobra matou com seu veneno naquela mata de babaçu nos Anapurus. Saíram pela manhã no rumo do centro de Parnaíba. José de Ribamar Justino e sia Vicença estavam passando agora pela Pharmacia do Povo, de doutor Raul Bacellar, quase na beira do rio. O doutor era de Brejo, conhecia muita gente e gente que tinha dinheiro. Talvez fosse mais fácil encontrar um serviço ali mesmo, entregando remédio, limpando o chão, os vidros, dando recado, varrendo a calçada, tudo.

Parnaiba antiga

Mas a moça do balcão, depois de perguntar do que se tratava, disse que o dono não estava naquele momento. Voltassem depois! Vicença não era de perder tempo e de ter medo de nada. Ficou perambulando com José Ribamar Justino mais um pouco e viu gente indo no rumo do Moraes, lá pra os lados do rio, na Coroa. Iam pra lá era agora! Uma fila de gente, uns quinze rapazes e até homens feitos procurando colocação. Não desanimou. Justino ali perto, mordendo os beiços e procurando criar coragem pra qualquer coisa. Sabia fazer um pouco de conta. Havera de ajudar.

 

Na sua vez Vicença foi chamada por um homem de barba por fazer que estava sentado atrás de uma mesa e sempre se levantando. Meio alto, pele queimada, poucos dentes na boca, falando alto e às vezes até gritando com algum companheiro lá pra dentro. Mas atendeu a viúva e seu protegido com certa cerimônia. Mandou sentar e tudo. Ela não encompridou conversa. Aquele era José Ribamar Justino, vindo de Brejo, terra de doutor Raul Bacellar! Conhece a Pharmacia do Povo? Conhece doutor Raul Bacellar?

E o rosário da vida de Justino foi sendo cantado sem tempo de sia Vicença tomar fôlego. Disse que era um rapaz de boa família, trabalhador pra toda obra e até sabia fazer conta de somar e dividir, multiplicar e diminuir. Sempre teve vontade de trabalhar no Moraes! Não bebia, não fumava, nem passava perto de cabaré. Justino, aquele rapaz ali na frente, era de extrema confiança! Nem se preocupasse. Era gente de dentro de sua casa! Falou de Pedro Teodoro, o barbeiro conhecido em toda a Parnaíba. Sia Vicença ia fazendo terreno.

Fazendo terreno e elogios pra ir ganhando corpo o pedido de emprego pra o filho de sua comadre. Firma boa essa do Moraes, muito movimento! Tinha que ter astúcia pra dar o bote na hora certa, feito cobra dentro de buraco. Ouvia dizer que o Moraes tinha negócios até no Rio de Janeiro, tinha navio levando óleo pra o estrangeiro, muita gente importante trabalhando. O encarregado pediu que deixasse o rapaz falar um pouco dele mesmo.

Sia Vicença ia acompanhando e até de vez em quando se intrometendo. No fim deu certo. José Ribamar Justino, que há pouco tempo havia chegado de Brejo dos Anapurus com Moisés e Aureliano pra mudar de vida na Parnaíba, cada um com duas mudas de roupas dentro de uma mala de madeira, um pente de chifre e um pedaço de sabão de coco pra tomar banho, era a partir de amanhã o varredor de pátio da firma dos Moraes!

*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras, cronista, contista e romancista. 

 

 

DIÁRIO – 23/03/2020

15194093135a9058a1b6b91_1519409313_3x2_rt

DIÁRIO

Elmar Carvalho

23/03/2020

            Na quinta-feira, dia 20, movida talvez por certa inquietude provocada por nossa quarentena contra o temível coronavírus, ainda mais que eu e ela nos enquadramos nos grupos de risco dos idosos e dos hipertensos, a Fátima foi descartar alguns papéis e objetos de uma gaveta, quando encontrou dois textos, que não faz muitos dias estive recordando.

            Um se chama A Banca do Distinto, que foi uma espécie de presente enviado por um “amigo”, no Natal de 2005, quando eu, aos 49 anos de idade, passava uns dias de folga em Parnaíba. O autor vergasta os arrogantes e soberbos, e lhes roga uma série de pragas, metafóricas ou não, explícitas ou implícitas, de cunho algo jocoso. Na verdade, trata-se da letra de uma música de Billy Blanco, que foi maviosamente interpretada pela inesquecível Elis Regina.

Quem me conhece sabe muito bem que não sou e nem nunca fui arrogante e muito menos soberbo; ao contrário, sempre fui tido na conta de humilde, embora eu mesmo não costume me atribuir essa virtude, porquanto isso já corresponderia a perdê-la.

O outro texto, datado de Parnaíba, 01/01/2006, é a minha resposta ao “amigo”, de há muito já perdoado, remetente da catilinária praguejadora, que segue abaixo:

“Agradeço-o muito pelo texto “filosófico” que o senhor me enviou. Para mim, teve o significado de um Cartão de Natal” e de Ano Novo. É sabido que cada um só pode dar as dádivas que tem.

E agradeço mais ainda a Deus pelo fato de que nenhuma das sentenças do referido texto serem condizentes com a minha personalidade, pois sou um homem humilde e temente a Deus, e tenho procurado tratar bem o meu semelhante, principalmente os mais pobres e mais humildes, visto que Deus me poupou da necessidade de ter de bajular os considerados ricos e poderosos. Mesmo porque, sendo um assalariado e pai de família, conheço muito bem os percalços e “apertos” da vida.

Infelizmente, sou criticado, por pessoas que não me conhecem bem, muito mais pelas minhas qualidades do que pelos meus defeitos, porquanto sou criticado pelo fato de ter estudado, por ter me esforçado para passar em concursos públicos e em vestibulares, e por não precisar mendigar benesses indevidas.

Rogo a Deus para não temer o termo de meus dias, e agora peço para ser um bom adubo para os frutos e para as flores do Senhor, pois todos nós, um dia, iremos repousar no ventre amigo da mãe terra.

Que Deus nos ajude a nos tornarmos cada dia melhores, para que todo dia cresçamos espiritualmente, e para que, a cada momento, nos tornemos mais generosos e fraternos.

Que nos aproximemos cada vez mais do bom, do bem e do belo, na escada e na escalada infinita para o ALTÍSSIMO!

E que Deus nos abençoe, nos proteja e nos guarde em sua mão poderosa.

Por fim, desejo-lhe um Ano Novo repleto de realizações, saúde e felicidade.”

Tempos depois, ingênua e candidamente, o remetente me explicou que, andando pelas ruas de Parnaíba, encontrara aquele texto de A Banca do Distinto, e “só” se lembrara de mim. Engraçado, o município já tinha mais de cento e tantos mil habitantes, e logo eu, que sequer residia nele, fui o agraciado com a epigramática oferenda.

Não posso deixar de me sentir um privilegiado.

DIÁRIO – 21/03/2020

ch-canind25c32589-3

DIÁRIO

Elmar Carvalho

21/03/2020

Dias após eu haver publicado minha crônica Canindé Correia – Mestre e Amigo, o Gervásio Castro me informou que estava elaborando uma charge para homenagear o saudoso e querido amigo, e que o meu texto lhe fornecera algumas ideias.

Na minha resposta, dada a nossa amizade e admiração recíproca, tive a liberdade de lhe dar algumas sugestões. Dias depois, ele, por e-mail, me enviou um esboço. Por telefone, lhe fiz algumas ponderações, para aperfeiçoamento de seu excelente trabalho, que ele prontamente acatou.

Embora eu tenha insistido com Mestre Gervásio para que ele não consignasse na charge o crédito “ideia: Elmar Carvalho”, como constava no rascunho, ele teimosamente o manteve, pelo que agradeço, conquanto fique com a sensação de que não mereci tamanha honraria e deferência.

Agora, para meu contentamento, acabo de receber a versão definitiva e genial de sua charge, que é na verdade uma grande e justa homenagem ao nosso Canindé Correia, que publicarei em meu blog e em outros sítios internéticos. Na fantástica ilustração, o Canindé aparece “desmontando” e olhando embevecido um magnífico e apetitoso caranguejo.

Vou reproduzi-la em papel fotográfico, para emoldurá-la e afixá-la em lugar de destaque do espaço Parnaso, em minha residência, já que ele se encontra no panteão de minha saudade, junto a outros amigos, minha irmã e meus pais.

“Saudade – asa de dor do pensamento”, como no imortal verso de Da Costa e Silva, com que evoco meus mortos.

ENFRENTA O INFERNO

ENFRENTA O INFERNO

Wilton Porto
Enfrentamos, juntos, muitos percalços
Estivemos no centro de redemoinhos.
Em nenhum instante, estivemos sozinhos,
Cristo valeu-nos em todos os espaços.

Você foi gigante: Leoa feroz.
Unha afiada, asa de mãe.
Foi água, oxigénio, moradia com pães.
E quando eu doente. Onde luz tão veloz?!

Suas carícias são chamas, no calor ou inverno.
Seu amor, do encanto, o maior dos encantos.
Sempre penso, ela estar rodeada de santos.
Para sermos felizes, ela enfrenta o inferno.

Outras vezes, vejo-a com poderes de anjo.
Um desses que veio ao mundo para guiar-me para o bem.
Pois quando estou perdido, buscando um arranjo,
Facilmente, ela é luz que me convém.

ENIGMA

 

Esforço em vão decifrar a alma de um poeta 

Às vezes ele sente,

Às vezes ele cria.

Escreve o que não vê

Procurando um poeta ser.

Muitas  vezes simples ficção

Outras vezes ele vive 

Deixando pensar ser imaginação.

Tem o poeta uma pouco de magia

Por onde passa deixa emoção.

Um poeta ninguém entendi

Mas ele entendi cada coração.

Autora: Maria Dilma Ponte de Brito