Mary, poema de Marciano Gualberto

MARY (*)

Mulher de cabelos bronzeados, onde o tempo se decrépita, mas seus pensamentos não!

O brilho dos seus olhos não!

A fonte de sua vitalidade não!

Emancipação de seus próprios desejos foi, até transcender, e depois de subir, tornou-se referência dos livros que lemos no enredo da história

Brilho celeste, vontade de potência, luz da mulher e história é tu: Mary Del Priore.

Marciano Gualberto (**)

(*) Dedicado a um dos maiores seres de humanidade e historiadora que tive o privilégio de conhecer.

(**) Minibiografia: Marciano Gualberto (Lord Gualberto) é historiador e poeta. Estudante das representações construídas sobre a África a partir do Brasil. Autor do livro africanista “Nguzu que rompe grilhões”, escritor internacional lançado em Lisboa- Portugal.

VACINAS E CICATRIZES

Altevir Esteves*

A equipe entrou na sala de aula da 4ª série do antigo primário.  Os alunos já ficaram tensos com a comitiva vestida de branco. Era o dia da vacina, uma campanha nacional contra a febre amarela. Uma agulhada com os aparelhos de aço que precisavam ser esterilizados a cada injeção.  Corria o ano de 1967 e o norte e nordeste brasileiros viviam uma nova onda da terrível doença, pois aquele mosquito Aedes aegypti já há muito tempo aprontava entre nós. 

Na minha vez não precisei levantar a manga da camisa, porque esta era muito curta. A moça, sem nada dizer, mirou meu minúsculo músculo deltóide e mergulhou a longa agulha. Um calafrio me invadiu e por um instante eu pensei que iria desmaiar, como já ocorrera tantas vezes e eu me lembrava muito bem. Após a pressão interminável do êmbolo, puxou o aparelho. Tentou, quero dizer. Não sei por que motivo, talvez mal rosqueado, a agulha continuou presa na carne como se de acupuntura fosse, enquanto a operadora, com olhos estupefatos, segurava a seringa sem saber o quê fazer. Nem eu. 

Mas havia um motivo. A enfermeira (assim a chamávamos), talvez inexperiente, mas obediente, aplicou no lugar indicado e assim atingiu uma cicatriz de terceiro grau que ganhei aos seis meses de idade, ao cair sobre um defumador para muriçocas, feito de esterco de vaca, em brasas e fumaça. Se não morri queimado, poderia morrer ali, apagado de pavor. Escapei, mas peguei a malária, para o quê não tinha vacina e assim passei um ano com febres diárias. Mas não morri, como se vê.

Não tardou dois anos e já estava de frente a outra agulha infernal. Mordido por um cachorro doido (raiva), fui sentenciado pelo Dr. Pacheco, na verdade um enfermeiro, experiente e grande trabalhador a quem o povo de Alto-Longá deve grande serviços. O nobre homem, talvez sempre estressado de tanto trabalho e contando com pouco ou quase nada de recursos, era conhecido pelo seu mau humor, o que lhe rendeu o apelido de “Doutor Garrancho”. 

Vinte injeções na barriga! Todo dia venha aqui! Não pode faltar nem um dia! Se faltar vamos começar do zero! 

E aplicou a primeira.

Vinte, sem faltar, veio repetindo meu irmão até chegar em casa e continuou repetindo para minha mãe. Mas, faltei.

Ocorreu que era época chuvosa, o nosso inverno. Quando já tinha tomado quatorze doses, eis que uma chuva intensa fez o riacho transbordar e neste dia não pude tomar a 15ª. Começar do zero, grunhiu meu irmão à beira d’água. Só não tentamos atravessar porque a correnteza era tanta que o barulho das águas se fazia soar a distância. 

Faltou por quê? – e sem esperar resposta – Eu avisei, eu não disse? Sem falhar! Começar do zero! Quer ficar doido? Tudo de novo! Eu avisei!

E aplicou de novo a primeira dose. Ao todo foram 34 picadas na frágil e agora sofrida pele ao redor do meu umbigo. Fui dado como curado, sem ficar doido. Não tive essa certeza.

Devia contar 17 anos quando um prego enferrujado entrou no meu calcanhar. Dor de lascar, mas o que pareceu mesmo me acabar foi saber que tomaria uma vacina, a anti-tetânica. E tomei. Pior, voltei pra casa com uma incerteza, pois me disseram que a ferrugem chegou primeiro no organismo e que assim o imunizante não teria efeito. Até hoje não sei se o prego estava mesmo danoso, se a vacina fez o seu trabalho. Mas não peguei tétano, nem nada.

Hoje me deparei com uma nova agulha. Fui fotografado, comemoramos. Moças educadas, lugar limpo, higiene à vista. Era pra Covid-19. Cheguei calado e calado, saí. Uma picada no ombro, no mesmo deltóide, mas a cicatriz tinha migrado para o bíceps e a agulha não ficou presa. Ao voltar para casa, sem riacho cheio, sem dúvidas profundas, achei que com aquela dose tinha me curado, finalmente, da febre amarela, da raiva e do tétano, de uma só vez, e que a Covid era só um pensamento, um sonho ruim, uma coisa invisível que perturba e maltrata. 

Nos últimos meses as coisas têm rodopiado tanto ao redor da minha cabeça, que às vezes acho que a febre amarela tenha mudado de cor, que a cicatriz amoleceu, que a raiva pegou em mim e que o bacilo tetânico tenha feito efeito contrário e assim me fortalecido. De qualquer forma, tenho uma dose extra no meu sangue e uma esperança enorme tomou conta de mim. 

“Que tenham vida e a tenham em abundância”, disse o Mestre de Nazaré. Além desse ensinamento encorajador, podemos seguir Erasmo de Roterdã e viver a loucura, porque ela é toda alegria e não tem tempo para tristezas e incertezas. De qualquer forma sei que posso seguir o meu caminho, mesmo sabendo que pessoas caem pela estrada da Vida e que temos que parar para socorrer. 

Vida que segue e segue cada dia mais transbordante, pois há vitórias mil, embora tenhamos lágrimas a chorar.

Altevir Esteves* funcionário aposentado do Banco do Brasil, escritor, poeta, maratonista e membro da Academia Parnaibana de Letras – Cadeira nº 14.

As gotas poéticas de Claucio Ciarlini

Elmar Carvalho

Neste dia 13, quinta-feira, através do programa Chá das 5, da Academia Piauiense de Letras, veiculado pelo Canal Nestante, iniciei uma amizade com o escritor e cronista Carlos Castelo, nascido em Teresina, mas desde criança radicado em São Paulo, graças a uma simpática brincadeira do apresentador Zózimo Tavares, que era coadjuvado pelo acadêmico Dílson Lages Monteiro. Recomendo assistam a essa excelente entrevista, que se encontra disponível no You Tube.

Quando foi ontem, por WhatsApp, recebi um texto de Carlos Castelo sobre haicai, publicado na revista virtual Bravo. Conciso, mas recheado de informações e em linguagem exemplarmente didática. Respondi-lhe que no dia anterior fizera um prefácio para um livro do poeta parnaibano Marciano Gualberto, em que lhe comentei alguns desse tipo de poema, contido nessa obra ainda inédita. Em resposta, ele me afirmou que nossas ideias eram coincidentes.

Do seu elucidativo e sintético artigo acho importante pinçar o seguinte: “A forma poética teve início com Matsuo Bashô, nascido em Osaka, em 1644. Adentrou pela Terra Brasilis através de traduções do francês, feitas por Afrânio Peixoto. E depois espraiou-se por muitos outros haicaistas, que vão de Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida, Pedro Xisto, Ciro Armando Catta Preta a Paulo Leminski e muitos outros.”

Em seguida, o articulista esclarece que o haicai hoje é tão popular quanto o soneto o foi no século 19. Porém, pergunta se o leitor já ouviu falar em senryu, para explicar que o gênero fora criado por Karai Senryu, no século 17, e que seria “uma forma mais mundana de haicai”.

Tendo ele dito que a nossa concepção sobre essa forma poética convergia, não me acanhei em lhe perguntar: “Poderíamos dizer que o senryu seria um haicai sem rigidez formal e mais aberto para vários temas?” Sua resposta foi afirmativa e sem titubeios. Acrescentei que iria repassar o seu artigo para um escritor e poeta amigo meu, o professor e editor Claucio Ciarlini, que produz os seus haicais.   

O Claucio, então, se lembrou que havia me pedido para escrever um comentário para o seu livro em elaboração, titulado “HaiCaos: Poema em quarentena”.

Contudo, tendo em vista que, sendo o haicai um gênero poético de rigidez formal, com versos de métrica certa, contada, e de temática sempre ou quase sempre voltada para a natureza e suas circunstâncias, inclusive a beleza da paisagem, o poeta passou a entender que talvez tenha que modificar o título de seu livro em preparo.

Pedi-lhe não se angustiasse, que ante essa rigidez de forma e fôrma, os poucos haicais que tive a ousadia de cometer, também já não o seriam; seriam senryu, que mais se adaptam a minha personalidade não afeita a “espartilhos” estéticos rigorosos, mas sim a uma mais ampla liberdade criativa. Observados os pressupostos formais do haicai oriental, os de Millôr Fernandes também não se enquadrariam; seriam também senryu.

No site Recanto das Letras, em artigo de Raul Pough, colhi a seguinte informação: “O SENRYU nada mais é do que um Haikai (três versos de 5-7-5, sem rigor absoluto), também sem título e sem rima, mas que em linguagem geralmente coloquial, de conteúdo cômico, humorístico, irônico ou satírico, conceitual ou filosófico, de forma epigramática, trata principalmente do cotidiano da vida, dos sentimentos, hábitos, atos e vicissitudes do homem e da sociedade.” Encerrou seu texto dizendo que o senryu seria um terceto à moda ocidental.

Todavia, ao entendermos que o senryu é uma “forma mais mundana de haicai”, não podemos deixar de compreender que de qualquer maneira não deixa de ser haicai, embora possamos considerar que seja uma variante, uma espécie de mutação. Então, nada demais. Até o famigerado coronavírus tem as suas variantes, sofre as suas mutações, e para o mal, por se tornar mais feroz e mais contagioso, enquanto a modificação do gênero poético oriental entendo tenha sido para o bem, para nos dar mais amplitude e diversidade formal e temática.

Os haicais ou senryu de Claucio Ciarlini não são orientados para uma métrica fixa e nem para obrigatórias rimas, vez que o poeta cultiva a liberdade formal, para alcançar uma mais espaçosa inventividade. Todavia, não quis transformar a sua liberdade em anarquia ou desregramento, porquanto usa com sabedoria e parcimônia as rimas, os ritmos e a concisão,  esta sobretudo em virtude dos tamanhos curtos dos versos, que o levam, creio, a uma polimetria, e não a uma ausência total de métrica; porém, não as fui contar.

Por outra parte a sua temática não ficou adstrita aos assuntos costumeiros do haicai ortodoxo. Como não poderia deixar de ser, pelo seu projeto delineado a partir do título, abarca vários problemas e circunstâncias físicas, sociais, políticas e psicológicas, desencadeados por esses sombrios tempos pandêmicos. Vejamos, à guisa de exemplo:

Alguns pastores sem noção

Numa loucura pelo dízimo

Podem dizimar uma nação

* * *

Mergulho em literatura

Aliviando-me a tortura

Até encontrarem a cura

* * *

Como pôde?

Perguntou o capitalista…

Pois pôde!

Acredito sejam esses três poemas acima suficientes para demonstrar a criatividade e a inventividade de Claucio Ciarlini, sobretudo o seu poder de síntese, a sua capacidade em dizer muito com um mínimo de palavras, sem descurar da emoção, da beleza e da sensibilidade.

Invocando o espírito do excelso bardo Manuel Bandeira e evocando a sua verve admirável, diria que os poemas minimalistas do nosso vate, sejam eles chamados de haicais ou de senryu, cometeram “o milagre de colocar o universo em uma gota d’água”.    

MARIA JOSÉ BRANDÃO RAMOS

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Associando-se à dor e ao sentimento de tristeza que neste momento toma conta da família acadêmica da ACALT, bem assim ao povo de Tutóia, pela perda inesperada da professora e acadêmica Maria José Brandão Ramos, a Academia Parnaibana de Letras-APAL deseja expressar suas condolências aos familiares, amigos e confrades acadêmicos da extinta, na certeza de que todas suas ações de vida foram exemplos de responsabilidade, honradez e amor ao próximo, o que fez com que ela fosse sempre admirada e amada por todos.

Parnaíba, 19 de maio de 2021.

José Luiz de Carvalho

Presidente

Antonio Gallas Pimentel

Secretário Geral

Memória Almanaque, por Jailson Júnior (Edição 61, de 1994).

Introdução

O Almanaque é, sem sombra de qualquer dúvida, um dos veículos históricos mais importantes que Parnaíba possui a honra de ter como seu. Fundado em 1924, o referido documento teve, em seus primeiros 17 anos, os cuidados paternos de seu criador Benedito dos Santos Lima, o famoso Bembém. Contendo anúncios e agregando os mais diversos literatos de nossa cidade e região, o Almanaque se seguiu até o ano de 1941, quando Bembém transferiu seus cuidados a Ranulpho Torres Raposo, empresário de renome que prosseguiu a missão de continuar moldando a identidade do periódico. Raposo editou ininterruptas 40 edições, entre 1942 e 1982. Com o falecimento deste, no mesmo ano, a publicação sofreu um relativo hiato, na falta de alguém que assumisse o papel de dar continuidade ao trabalho já consagrado de Lima e Torres Raposo. No espaço dos próximos 12 anos, foi produzida uma única edição, editada pelo sociólogo Manoel Domingos Santos, neto de Raposo, em 1985.

Vendo a necessidade de se continuar o legado desse importante veículo cultural da cidade, os descendentes de Torres Raposo, herdeiros do Almanaque, transferiram sua titularidade sem nenhum ônus para a Academia Parnaibana de Letras no ano de 1994, que o ressuscitou, transformando-o em sua revista oficial. Desde então, o Almanaque ganhou mais 12 edições, estando em sua 72° edição (esta última, na data desta publicação, já finalizada e impressa).

No curso dessa coluna, farei, com humildade e afinco, uma análise de seu conteúdo a partir da edição 61, de 1994, já editada pela APAL e impressa pela Editora Gráfica da UFPI. Com humildade, pois, não sendo um longevo pesquisador, ainda me faltam os passos e os olhos de cientista que são apurados pelo exercício e lapidados pelo tempo. Com afinco, porque sei que tenho em mãos a própria história viva e escrita, que atravessa os tempos, as gerações de mulheres e homens que se dedicam a construir a literatura da cidade, mesmo que involuntariamente, e que deixam sua marca no fino riscar do tempo lhes concedido.

Almanaque 61°

Iniciando o volume 61, o então reitor da UFPI, Charles Camilo da Silveira, orgulha-se do avanço que a universidade, criada por lei em 1971, havia alcançado até aquele momento. A instituição apoiou a reimpressão do Almanaque produzindo os exemplares daquele ano em sua gráfica. Logo em seguida, o ressurgimento do Almanaque foi ufanizado pelo então presidente da APAL, Lauro de Andrade Correia, que, brilhantemente, comparou esse feito com a Fênix, ave mitológica que renasce das próprias cinzas, mais bela e mais forte.

Em seguida, merecem alusão os símbolos municipais: Hino, Armas, Bandeira e Selo, instituídos a partir de projetos do então prefeito Lauro Correia, contendo a íntegra das Leis que regulamentam cada um desses símbolos. Renato Castelo Branco cita quatro figuras singulares em sua crônica, o Padre Roberto, a humilde beata D. Gracinha, o místico intelectual Alarico da Cunha e a misteriosa candomblecista D. Ana Calango, que para ele seriam, cada um à sua maneira, “As quatro versões de Deus”, título de seu texto.

O renomado Assis Brasil figura logo após com seu conto “Uns dentes para Sarita”, decantando em miúdos mais um dia na vida de uma família sertaneja que vê na cidade grande uma oportunidade de mudar de vida. Manoel Domingos, o mesmo editor de 1985, neto de Torres Raposo, lembra o desprezo do avô pelo Beira Rio, Beira Vida de Assis Brasil, descobrindo, durante a furtiva leitura da obra, o porquê do rechaço daquele pelo romance mais conhecido de Assis.

Do já saudoso Fontes Ibiapina, foi incluído o capítulo Insurretos de seu livro Pedra Bruta, trazendo memórias de infância do pequeno Nonon com sua família e os Revoltosos Gaúchos. Na seara mais historiográfica, Pádua Ramos elenca vários argumentos que justificam o subdesenvolvimento secular do Piauí em relação a outros entes da Federação. Em seguida, entre as páginas 39 a 44, fotos do acervo particular da família Lima dos Santos e de Alcenor Candeira Filho trazem uma Parnaíba saudosa de lugares, memórias e prédios, alguns deles existentes até os dias de hoje. Fotos desse mesmo acervo retornarão a aparecer em outros momentos.

O mesmo Alcenor prossegue, relatando sua labuta em ler o complexo Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Lendo-o e versificando-o, descobre, em correspondência com o já citado Renato Castelo Branco, que trabalham, sem saber, na mesma sintonia, este também poetizando o magnum opus de Rosa. Por ocasião disso, publicam no mesmo ano de 1993 a obra Poemas do grande sertão, expondo seus versos. Alcenor completa o relato expondo seus 433 versos sobre o romance de Riobaldo Tatarana.

Novamente, Lauro Correia, em um artigo sobre Parnaíba, remonta há 30 anos antes, citando a época em que foi prefeito da cidade e abordando aspectos pertinentes ao seu mandato, e Vitor Couto segue a obra abordando em mais um artigo o necessário tema do Meio Ambiente, na época abordado pela camisa ECO-92, trazendo iniciativas que já ocorriam quanto à conscientização das pessoas ao tema e em como o desmatamento afetava/afeta diretamente o ecossistema do Delta do Parnaíba.

Pádua Ramos retorna com mais um conto, Era proibido fumar no Paraíso, onde remonta a uma saudosa Parnaíba de sua juventude, que se concentrava para ver os filmes no Cine Éden. Segue-se a este

12 poemas de nomes já falecidos, a saber: Luiza Amélia de Queiros, Alarico da Cunha, Oliveira Neto, Monsenhor Roberto Lopes, Thomaz Catunda, Jesus Martins, Berilo Neves, R. Petit, Jonas da Silva, Edson Cunha, Vincente Araújo e Paulo Veras.

No artigo do professor Francisco Filho, há uma passagem embasada em pesquisas pelos momentos econômicos os quais viveu a cidade. Logo após, um poema romântico e saudoso de autoria de Jorge Carvalho, intitulado Lila. Em Parnaíba e seus dogmas, Fernando Ferraz problematiza a velha retórica das elites locais, que sobrevivem do velho discurso de um lugar que tudo “já teve” e hoje estacionou-se no tempo. Em seguida, o jornalista Batista Leão remonta à origem das esquetes do que hoje são as Academias de Letras, passando pela Francesa, Brasileira, Piauiense e, finalmente, a Parnaibana.

Logo após, 16 fotos de pontos da Parnaíba são registrados na coluna Ensaio Fotográfico, de lugares que guardam em si a história da cidade e suas nuances. Em seguida, Reginaldo Santos Furtado destaca, em texto esclarecedor, a trajetória do engenheiro parnaibano José Mariotte de Lima Rebelo, secretário de Obras Públicas do governo piauiense (dentre muitos outros cargos ocupados), que ajudou a sonhar, projetar e idealizar obras como a barragem Boa Esperança, o Porto de Luis Correia, e que, em muitos artigos publicados, demonstrava amplo conhecimento de como colocar em prática tais obras citadas, primando pelo desenvolvimento de nossa cidade.

Em Parnaíba – Norte do Piauí, Danilo Melo Souza atenta para a estagnação sofrida pela cidade com a decadência no comércio fluvial sofrida no pós Segunda Guerra Mundial, e em como isso afetou diretamente a produção artística de até então, destacando alguns movimentos esparsos que ocorreram até aquela data. Israel Correia relata logo em seguida todo o contexto envolto em seu primeiro livro de poesias, intitulado Templário, em alusão à Ordem dos Templários, irmandade criada em Jerusalém, em 1119. Boa parte dos poemas de sua obra, segundo Correia, são odes a esses guerreiros, seus feitos e seu legado. Completa ainda com 4 poemas extraídos do livro, de títulos Templário, Viageiro, Gnose e Opsis.

O renomado médico Cândido Athayde ressalta a importância da Santa Casa de Misericórdia de Parnaíba, hospital que, em 1994, contava com 98 anos de existência, relatando breve histórico desse que ainda é “O mais velho Hospital do Piauí” (título do artigo). Em seguida, mais 12 imagens integram o corpo dessa salutar obra, destacando outros pontos convergentes da história secular dessa terra. Em mais uma análise metalinguística de nosso país, Marc Jacob, em “Por que não nós”, põe sua ótica refinada em analisar aspectos de um Brasil atrasado e de escolhas duvidosas. Na página 123, Jeanete de Moraes Souza traz sua leve e bem talhada poesia, nos textos Pedra do Sal e Envelhecer.

Sólima Genuína, filha do já citado Bembém, traz um memorial da vida e trajetória do Cel. Epaminondas Castelo Branco, homem culto de seu tempo, político atuante e cidadão engajado por Parnaíba. Em seguida, o quadro social dos acadêmicos em 28/02/1994, que até então contava com os iniciais 35 assentos imortais. Elmar Carvalho, em seu texto, exalta a biografia e a poética de Alcenor Candeira Filho, seu confrade. Wilton Porto, após breve histórico sobre a obra aqui dissecada, publica seis breves artigos que publicou no jornal Tribuna do Litoral, em texto intitulado Conflitos Sociais – causas e efeitos.

Christina Moraes Souza prossegue destacando a inércia dos poderes públicos em investir em educação de qualidade e em como isso afeta as classes pobres, destacando o MOBRAL (1972) e o PROJETO PARNAÍBA (1989). O saudoso Rubem Freitas destaca a figura do lendário Cajueiro Humberto de Campos, eternizado por esse filho adotivo de Parnaíba em sua crônica Um amigo de infância, enxertada em parte no seu texto. Cita também o comemorado centenário de Humberto (1986) e o centenário da árvore, que ocorreria dali a dois anos (1996). Em seguida, 6 poemas ufanistas sobre nossa cidade são colocados, sendo Porto salgado, de Israel Correia, Terra Mater, de Jonas da Silva, XVIII.Parnaíba, de Alcenor Candeira, Parnahyba, de Danilo Souza, Praça de Santo Antônio, de Jorge Carvalho e Balada da Praça da Graça, de Elmar Carvalho.

A também saudosa Edmeé Rêgo de Castro relata um breve histórico e as qualificações técnicas da praia de Pedra do Sal. Dona Lígia Ferraz segue o Almanaque homenageando a também educadora, como ela, professora Maria da Penha Fonte e Silva, fundadora da APAL, que havia partido desta vida há pouco tempo. Carlos Araken, em um Certo Doutor Athayde, exalta a biografia, árvore genealógica e feitos do já citado dr. Cândido Athayde, renomado médico parnaibano.

Na crônica Virgenzinhas Dolarizadas, Vitor Couto destaca a figura de Benedito, pai de sete filhos que sofre um acidente após ser assustado por adolescentes que buzinaram sem ele perceber para assustá-lo. José da Guia Marques segue com seu artigo Uma Igreja a Serviço do Colonialismo, destacando como se deu a participação da Igreja Católica no processo de colonização de nosso país. A chegada do trem de ferro ao Piauí é mostrada em detalhes pela historiadora Maria Cecília Silva Nunes, ao mesmo tempo em que destaca como aquele acontecimento repercutiu no imaginário das pessoas mais simples que aqui moravam na primeira metade do século XX. Seguindo a série, mais 9 fotografias de pontos importantes de nossa cidade são colocadas.

Orfila Lima dos Santos contribui para o Almanaque com o discurso que realizou no lançamento do livro “Benedito dos Santos Lima – Intelectual Autodidata”, encabeçadopela Academia, homenageando seu pai, o criador do periódico aqui analisado. O secretário de educação da época, Canindé Correia, aproveita o espaço para esclarecer à população o que estava sendo feito pela gestão municipal pela educação pública parnaibana, citando objetivos, dados e diretrizes.

O padre Claudio Melo, ancorado em robusta bibliografia, traceja os caminhos que levaram os portugueses a privilegiar o povoamento do Norte piauiense em detrimento do Sul, levando em conta o potencial comercial e portuário do qual a região até então gozava.

E o material que encerra a primeira edição do Almanaque editado pela APAL foi o Anuário Parnaibano de 1993, periódico que funcionava como uma ficha técnica de cada ano da cidade de Parnaíba, trazendo um apanhado geral de tudo o que dispunha a cidade, entre quantidade de escolas, templos religiosos, quadro de prefeito e secretários, vereadores, órgãos de saúde, entre múltiplas outras informações pertinentes que devem ser de conhecimento público. O Anuário foi organizado e publicado pelo então professor da UFPI Campus Parnaíba e acadêmico da APAL, o saudoso professor Francisco Iweltman Mendes.

Jailson Júnior

  • Texto publicado originalmente na edição 152 de O Piaguí, em janeiro de 2021.

Mandu Ladino, mais que uma lenda!

CRÔNICA

Por José Luiz de Carvalho* 

Ao contrário do cacique e pajé Nheçu que no vale do Ijuí, no Rio Grande do Sul, no início dos idos 1600, nunca aceitou a presença do homem branco em suas terras. Mandu Ladino, no vale Rio Longá, na região Norte do Piauí, teve uma vida tranquila até a idade adulta, morando em uma fazenda prospera, onde inicialmente foi escravo e depois virou homem de confiança do proprietário, exercendo as funções de vaqueiro.

 Na antiga terra de Nheçu, hoje a cidade de Roque Gonzáles, o escritor Nelson Hoffmann, em seu livro –  “Na história das Missões”, apenas um único indígena levantou a sua voz, uniu o seu povo e enfrentou o homem branco invasor; não fez conluio com qualquer homem branco; não defendeu ideias que não fossem as de sua gente e só quis guardar o sagrado direito de permanecer na terra que sempre foi sua – a terra com as tradições que seu povo cultivava desde sempre.

O índio guarani, Nheçu, e o padre paraguaio, Roque Gonzáles de Santa Cruz, protagonizaram, nas terras sul-rio-grandenses, de forma irredutível, uma das mais vigorosas contendas da história das Missões Jesuíticas. Padre Roque, após fundar várias reduções no Paraguai, Uruguai e Argentina, recebeu a difícil missão de adentrar a região, onde é hoje o Estado do Rio Grande do Sul, exatamente nas terras de Nheçu. No dia 15 de agosto de 1628, padre Roque, com a ajuda do padre João Castilho, com a permissão de Nheçu, embora com restrições, fundaram a Redução de Assunção a qual durou apenas três meses. Durante o processo de catequese, as imposições dos padres não se coadunavam com as vivências indígenas. Nheçu resolveu cortar o mal pela raiz: ordenou a morte dos padres. Assim, entre os dias 15 e 17 de novembro daquele mesmo ano, com exagerada crueldade, em Caaro, foram mortos o padre Roque Gonzáles, Afonso Rodrigues e no dia 17, em Assunção do Ijuí, o padre João de Castilho os quais  tornaram- se os Mártires das Missões.

Naquela época, a reação dos brancos foi imediata e igualmente violenta. Em várias batalhas, mais de 200 índios foram mortos, inclusive os doze líderes da revolta, ficando apenas Nheçu que conseguiu fugir pelo Uruguai, a fim de que nunca mais fosse encontrado. A Terra de Nheçu, após a destruição de suas instalações e plantações e a consequente fuga dos índios sobreviventes, virou a “Terra de Ninguém”.

Quase um século depois, num outro extremo do Brasil, um índio rompe sua boa relação de convivência com os brancos. Por sua saga, Mandu jamais poderia ter vivido pacificamente com os homens brancos, pois, quando menino e muito pequeno, ao lado de sua irmã mais velha, assistiu à destruição de sua aldeia e a morte dos seus pais. Depois, eles foram levados pelos assassinos, para serem criados em fazenda na região de Campo Maior. O adolescente Manuel foi separado da sua irmã e levado para um aldeamento, no Cariri do Boqueirão, no interior da Capitania de Pernambuco, para estudar e ser cristianizado pelos religiosos da Ordem dos Capuchinhos.  Após uma rebelião, fugiu e retornou ao Piauí, onde desenvolveu um trabalho, conduzindo gado de Campo Maior para as indústrias de Charque da Parnaíba.  O motivo da revolta de Mandu Ladino foi o assassinato da sua irmã pelo Capitão Mor Souto Maior, por causas de ciúmes, uma vez que ele havia se apaixonado pela índia que  tinha um namorado, um homem branco e por essa razão, não havia correspondido às invertidas do “nobre capitão”.  Mandu juntou um pequeno grupo de índios e matou Souto Maior e todo o seu contingente policial,  depois fugindo para os   “Morros Azuis”, onde arregimentou um grande grupo de índios de várias tribos, de onde descia para saquear as fazendas, levando víveres, animais e armas.  Segundo alguns historiadores, o Cacique Mandu Ladino teria formado um verdadeiro exército, composto de milhares de índios, cuja atuação e movimento rebeldes  estenderam-se pelos sertões do Piauí e Maranhão, alcançando o  Ceará e que, sob o seu comando, muitos portugueses morreram e muitas fazendas foram arrasadas nessa grande região em três estados.

Diferentemente de Nheçu que combateu os brancos por razoes ideológicas religiosas,  Mandu combateu os brancos com sentimento de vingança de ordem pessoal. Na verdade, tornou-se um renegado e perseguido após ter matado Souto Maior.  Embora alguns estudiosos da história registrem que a sua luta teve também objetivo revolucionário, Mandu Ladino teria sonhado com a construção de uma grande nação indígena, em terras do Piaui. Na verdade, ele cometeu muitas atrocidades contra as pessoas, nas fazendas as quais invadiu com seu grupo de renegados, devolvendo na mesma proporção a violência praticada pelo homem branco nas invasões das aldeias indígenas. No período de 1712 a 1719, por quase  de 7  anos, durou uma  longa guerra entre fazendeiros  e índios, tendo terminado, somente, com a morte de Mandu Ladino que, após ser baleado, afogou-se, no rio Igaraçu, nas proximidades de Villa de Nossa Senhora de Montserrat da Parnaíba e com a prisão dos seus principais líderes rebeldes, diante das forças,   chefiadas por Francisco Cavalcante de Albuquerque e com a ajuda do Mestre-de-Campo da capitania do Piauí, Bernardo de Carvalho Aguiar.

Hoje, diante da falta de documentos históricos comprobatórios e à guisa da imaginação dos romancistas, contistas e poetas, Mandu Ladino, a cada publicação feita, distancia-se do homem índio, nascido na região de Alto Longá, que morou em Campo Maior e morreu na Parnaíba, virando apenas uma lenda cheia de glamour e de heroísmo, uma fascinante narrativa de ficção literária!

Crédito Imagem para Moisés Rego

 José  Luiz de Carvalho* Jornalista, poeta, cronista e contista, presidente da Academia Parnaibana de Letras e membro do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba. 

OBS:  Obra de ficção literária