O CAVADOR DE BURACOS

Por Pádua Marques 
Pádua Marques – escritor, contista e romancista – cadeira 24 da APAL
Foi chegar naquela manhã pra mais um dia de trabalho e encontrar a rua toda cheia de buracos e os trabalhadores jogando a areia na calçada de sua sapataria na rua Duque de Caxias. Seu Mário saiu apressado pela calçada, entrou na rua do Rosário em direção da praça da igreja e em lá chegando viu aquele desmantelo todo. Desde a madrugada que a Parnaíba estava de cabeça pra baixo com as ruas sendo calçadas por ordem do prefeito Ademar Neves.
Puxou conversa com um sujeito, que pelo visto seria o mestre ali próximo e ouviu dele que a Parnaíba estava em obras. O dono da Sapataria Estrela voltou de cabeça baixa, segurando o molhe de chaves e pelo caminho curto foi procurando outros comerciantes pra somar as queixas com aquela anarquia que estava nas portas de seus estabelecimentos. Veio chegando mais gente e mais gente e o ajudante de balcão Pompílio, dito Carvalhinho, e se juntou aos que ficaram admirados com tudo aquilo. Conversa pra um dia inteiro!
Era um dia perdido pra seu estabelecimento e os de seus colegas na região do Hotel Carneiro e o Hotel Parnaíba, lugares onde se hospedavam os caixeiros viajantes vindo de Tutóia e São Luís no Maranhão e isso fora os homens de dinheiro no bolso de Parnaíba, industriais, corretores de cera de carnaúba, de jornalistas, médicos e advogados que viajavam pra outros centros e andavam ali pela mercearia do Bembém e nos cafés da praça da matriz com seus sapatos lustrados e de boa qualidade.
Mário de Lima Passos, o dono da sapataria mais procurada da Duque de Caxias em Parnaíba naquele ano de 1934, herdou o negócio do pai, Honório de Lima Passos e vivia tocando a sapataria na esperança de um dia mais lá pra frente entregar pra o filho único, Edgar, menino, quase rapazinho de seus quinze anos, mas que pouco mostrava interesse pelo comércio. Vivia debaixo da saia da mãe, dona Olívia, que fazia todos os gostos dele e escondendo suas peraltices.
O dono da sapataria queria porque queria que o filho se formasse contabilista, mas o menino, assim feito outros filhos de endinheirados da Parnaíba, não queria nada na vida. Vivia enfurnado no quarto escrevendo e desenhando esquisitices e a conversa era de que mais tarde iria levar pra seu Bembém, comerciante influente e que publicava uma revista, o Almanaque da Parnaíba. Vez em quando Edgar passava na loja, mas pra varrer as moedas das gavetas do apurado e depois seguia pra o cinema dos carcamanos.
O dono da sapataria que calçava os ricos, os caixeiros, os políticos, o prefeito Ademar Neves e até os pedantes e as mulheres elegantes, vivia zangado e queixoso da vida do filho. E de tanto viver gastando o que tirava da gaveta da loja o menino acabou dando pra beber e a fumar. Arranjou uma namorada e era de passar o dia inteiro na porta da casa dela prometendo mundos e fundos. Dona Olívia já nem metia a cara na porta da rua, de tanta vergonha.
Mas agora o dono da sapataria estava contrariado com Ademar Neves, a quem dava os piores nomes feios. Também pudera! Do dia pra noite a rua da sapataria ficou toda revirada! Duque de Caxias, 28 de Julho, rua do Miranda, travessa da Glória, rua do Braga, a Souza Martins, Riachuelo, Pires Ferreira, praça Jonas Correia e Marquês do Herval. E naquela revolta de quem estava sendo contrariado e prejudicado foi pra porta da loja tentando montar uma vingança.
Lá na ponta da rua Duque de Caxias apareceu o negro Simão Pedro, velho mestre de pedreiro e metido a letrado, a jornalista político. Vinha das bandas do porto. Quando não estava nalguma obra em cima de andaimes, dando ordens, era de passar na mercearia de seu Bembém pra tomar uma aguardente, um conhaque e ler algum jornal deixado à revelia. Gostava de falar mal de Getúlio Vargas e de birra dos intendentes passados e agora do prefeito Ademar Neves, a quem atribuía de ser gastador do dinheiro da prefeitura com coisas desnecessárias. Coisa sem fundamento.
Era naquela mercearia por onde passava toda a gente mais importante da Parnaíba e ele queria ser parte dela. Em lá instalado ia à procura de alguma coisa pra ler depois de sentado num tamborete perto da entrada da porta. Homem de boa estatura, negro retinto, rosto redondo, mais de sessenta anos, uns cacos de dentes na boca, os caroços dos olhos amarelos, sempre cheirando a aguardente e a fumo, vestia terno de linho branco  já encardido na gola, gravata preta e andava calçado de tamancos.
Simão Pedro tinha as palmas das mãos grossas e encardidas, mas escondia uma coisa, uma arte nunca ali vista e se vista pouco entendida e acreditada na Parnaíba. Escrevia textos e versos na língua de Shakespeare. Seu pai, um irmão e seus tios trabalharam a vida inteira no porto Salgado pra o pessoal da Casa Inglesa e aprenderam a falar e a escrever alguma coisa. Mário vendo o negro mestre de pedreiro se adiantando na sua direção foi logo contando o ocorrido. Ele ficou ali ouvindo as queixas do comerciante e na cabeça formando alguma tirada pra por certo escrever depois.
Acertaram que Simão Pedro sabendo falar e escrever em inglês e sendo jornalista e metido no meio daquele pessoal bem que poderia escrever um artigo reclamando e falando dos prejuízos que as obras da prefeitura estavam causando aos comerciantes da região do centro de Parnaíba. Em troca ganharia um par de sapatos, novinho, da melhor marca e que muito haveria de servir pra quando fosse à missa na igreja dos pretos. Negócio fechado. O par de sapatos já saiu dentro de uma caixa e debaixo do braço do negro.
O mestre de pedreiro, como fazia de costume, foi sair da sapataria Estrela e mais um pouco estava dentro da mercearia de seu Bembém tomando seu conhaque. De lá foi ao Mercado Central e já bem pesado pela bebida tomou o rumo dos botecos imundos dos Tucuns. E foi lá que perdeu ou que lhe roubaram a caixa de sapatos. Dias passados e sem ter como dar satisfação pelo que havia tratado, desapareceu. Passou um mês, dois e três. Simão Pedro um belo dia foi visto calçado com os inseparáveis tamancos de cajueiro.  Não teve diabo que fizesse se acostumar com aquela coisa nos pés.

Cronologia Poética (2013): Maldita

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Insônia é a vilã intragável que me consome agora
Não me deixa quieto (talvez o correto)
Com um sorriso desgraçado de ironia, na boca
E eu me perdendo no desprezo deste dia
Perdendo o sono, a paciência, a beleza

Insônia que me traz, e traz: angústia que nem sempre é bom
Mas o que fazer? Não há, não há
Se na noite ela me provoca feito Diabo a Jesus
Que cruz, meu Deus, que cruz!
E eu tão pouco sou Deus pra lidar, para domar a fera

Insônia para poucos, que coléricos, gritam feito insanos
Sufocados à espera do agrado do danado (Morfeu)
Penitência maldita no pingar lento dos olhos cansados
Desgraça calada, que cutuca e desnorteia
Num turbilhão de mensagens bizarras e complexas

Insônia é a droga que ninguém deseja
Mas que todos procuram remédio, solução
A droga pra droga (que droga!)
Agoniação indigesta e praticamente imbatível
Como os sonhos ainda não conquistados, que me esperam

No amanhã, que só chegará se eu dormir.

Claucio Ciarlini (2013)

  • Chego a 2013! E diferente da temática e do bom humor relativos ao poema “Maldita”, os problemas com que me deparei não foram ligados à insônia e foram nada agradáveis. Aliás, poucas vezes me desentendi com Morfeu.  Porém desde a infância eu vinha lutando contra um inimigo interno do qual desconhecia o nome (por ser de difícil o diagnostico) e só viria a ser revelado no ano seguinte: Síndrome de Tourette. Tiques, TOC e alto déficit de atenção, que em cruel combinação, definiram o meu comportamento por bastante tempo, ora em fases mais graves, outras nem tanto,  levando a uma grande timidez, dificuldade de aprendizagem e de relacionamento com as pessoas. Obviamente que tudo isso acabou por me influenciar em termos de escrita, e em razão disto optei por compartilhar. Com o passar do tempo fui aprendendo a conviver e a superar, contudo neste ano de 2013 a Tourette “gritou mais alto”, dificultando até mesmo o meu trabalho como professor, embora, no fim, eu tenha conseguido contornar.

A CARTA NÃO FOI

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MARIA DILMA PONTE DE BRITO
ACADEMIA PARNAIBANA DE LETRAS – CADEIRA 28
PATRONO – LÍVIO LOPES CASTELO BRANCO
1 º OCUPANTE HUMBERTO TELES MACHADO DE SOUSA
DO LIVRO “O QUINTO” – INÉDITO

          Senti vontade de escrever uma carta como nos velhos tempos. Foi difícil encontrar uma papel fininho para facilitar colocar no envelope e pagar menos na postagem. A caneta utilizada foi a BIC, idêntica a usada nos tempos de escola e que produzi com ela muitas e muitas outras cartas. Sempre gostei de escrever. Fiz uma pausa para verificar a idade da caneta BIC e o Google me informou que ela data de 1950, lançada na França por Marcel Bich.

       Voltando à carta. Por que escrever uma carta se temos e-mail, whatsApp, fecebook, instagram? Talvez para matar a saudade dos velhos tempos, ou mesmo para exercitar a mente, a coordenação motora e aguçar o poder de concentração me desplugando do mundo.

      Para quem escrever uma carta? Sem dúvida para alguém muito especial que mereça o tempo que se gasta debruçado no papel para largar pensamentos, ideias e emoções.

     O que escrever em uma carta? Na verdade não sei mesmo o que quero escrever. Olhando pela janela vejo um jardim florindo, vejo pássaros cantando, o vento balançando as folhagens, o céu azul estampado de nuvens que bailam pra lá e pra cá e vou descrevendo esse quadro com letras, lembrando o tempo de escola quando a professora colocava no quadro uma gravura para que fizéssemos uma redação.

    Finda a carta sem destinatário e nem assinei embaixo, mas dobrei, pus no envelope branco. Não encontrei aqueles com bordas coloridas verde e amarelo. Também não tinha selo em casa e nem a goma arábica para colar o envelope. Assim, ela não foi lacrada e nem para o correio porque não tinha também o endereço do destinatário. E agora? O que fazer com ela? Guardei entre livros. Escondidinha está.

    Valeu a pena escrevê-la. Dizem os sábios que a carta é uma produção artesanal e também uma espécie de detox tecnológico. Eu digo mais, é algo valioso por ser uma produção humana, escrita a punho, uma demonstração de afeto que deixa no papel as marcas de uma caligrafia, o perfume das mãos de quem a escreveu, é registro, é documento quando assinado e tem lacre, carimbo para simbolizar o sigilo e a segurança.

    Algumas cartas são históricas como a de Pero Vaz de Caminha que é um documento registrando as suas impressões sobre a terra descoberta, o Brasil. Também são famosas as cartas de amor de Almeida Garrett para Rosa Barreira, de Napoleão Bonaparte para Josefina e de Fernando Pessoa para Ofélia Queiroz.

    A carta que acabo de redigir é simples e sem resposta, mas é uma obra escrita para a posteridade. Um belo dia será encontrada solta entre os livros largados na estante.

   Cabe aqui lembrar Heitor Villa-Lobos quando diz: “Considero minhas obras como cartas que escrevi à posteridade, sem esperar resposta”.