*Pádua Marques.
Era outra que metia medo em quem passasse por perto de sua casa. Casa era modo de dizer. Era mesmo uma tapera sem tirar e nem acrescentar. Era casa feita de barro batido e coberta de palha com suas duas janelas de frente pra o nascer do sol e uma porta de fundo. Era tudo. Mas tinha uma coisa de dar inveja em qualquer casa de rico, o jardim na frente, cheio de roseiras e margaridas. Negra Lurdes era de ficar o dia inteiro aguando as plantas, limpando os canteiros e retirando alguma lagarta ou inseto mais resistente. Menino nem era besta de passar perto.
Negra Lurdes, ninguém sabia de onde havia saído. O mais é que havia trabalhado em casa de gente rica ainda mocinha e tendo emprenhado do filho do patrão, perdeu o menino e foi mandada embora. Agora já nos seus mais de quarenta anos levava a vida fazendo algum serviço na casa de um e outro, uma lavagem ou um passar de roupa por um trocado que lhe garantia um passadio miserável. Qualquer trocado que tivesse à mão corria na quitanda e comprava um mercado de farinha, toucinho e feijão, café e açúcar. Pra se alumiar dentro da tapera era coisa de um quarteirão de querosene.
Vizinhos não se davam com ela nem pra bom dia, quanto menos pra boa noite. Era enfezada a danada da negra. Mas não foi assim quando o filho do patrão se engraçou dela. Dizem que era uma negrinha linda, de feições de branco, nariz afilado, cintura fina e batatas das pernas bem feitas. Mais que depressa estava nas graças do rapazinho, metido a conquistador, mas que era muito cobrado pelo pai pra estudar e fazer carreira fora de Serragem, sua terra.
Quando Lurdes começou ter enjôos e arredondar a cintura, a patroa mais que depressa tratou de esconder o leite. Mas naquela altura a barriga estava crescendo e a fadiga pelo trabalho dentro de casa chamou a atenção do patrão. Chamou a criada e cobriu de nomes feios. Como é que podia assim de uma hora pra outra uma coisa daquelas acontecer debaixo de suas barbas? Na vez do filho buliçoso o castigo foi de mandar embora sem um bater de pestana.
Mas também não podia de proibir que o filho mostrasse gosto por mulher. Melhor era que gostasse de mulher do que de outra coisa. Assim do dia pra noite o menino se viu ganhando o mundo e deixando a negrinha desamparada. De desgosto e passando necessidades a criada foi emagrecendo e empalidecendo até que botou o filho pra fora. O certo é que Lurdes acabava de receber um castigo. Castigo porque confiou em promessa embaixo de lençol e justamente com gente que não haveria de ser pra seu bico.
Passados uns anos o rapaz voltou e procurou saber dela. Mas negra Lurdes agora não era mais graciosa. Havia perdido a metade dos dentes, a cintura fina deu lugar a uma pança enorme e as feições de mocinha deram lugar a traços grosseiros. O desencaminhador da criada nem se deu ao trabalho de procurar saber do filho. Mas pediu que os pais lhe dessem algum dinheiro. Foi com este dinheiro que Lurdes comprou um terreno aonde construiu sua tapera.
Foram tempos mais que difíceis. Ninguém estendia a mão pra pobre da moça. A família do rapaz em tudo que era lugar destratava dela e quando alguém enxergando sua necessidade e oferecia trabalho era logo dada por saber do ocorrido. E foi de não em não que Lurdes, de tanto levar porta na cara e relho nos couros que foi criando resistência. Era dura a volta com aquela mulher. Que ninguém olhasse com cara feia ou achasse de tirar qualquer tipo de graça.
– Que foi que tu viu?
Era dali pra pior. Um dia estava ela a lavar sua roupa na beira do rio e uns rapazes que tomavam banho e se divertiam em bebedeira acharam de criar caso. O trato era de que começassem uma briga entre eles e acabassem caindo por cima dela. Ninguém duvidava que Lurdes andasse armada de canivete. Era arma guardada por baixo do cós da saia e naquela ocasião estava entre os pertences. Os rapazes brincavam de correr atrás uns dos outros e naquele movimento caíram perto dela.
– Não estão me vendo aqui não?
Um deles, de corpo mais avantajado e de pele clara tratou de ofender a negra. Disse que ela era de pouca igualha e que ele mesmo que não iria perder tempo tratando e trocando palavra com aquele tipo. Negra Lurdes não pensou mais que um rasgo de tempo e correu a mão embaixo da trouxa onde estavam sua comida e peças pra lavar. Foi certeira em cima do canivete. Nem pestanejou. Sem se sentir a arma foi entrando de carne adentro e o sangue acompanhou.
– Não te falei? Num mexe comigo!
Os outros, vendo aquele ocorrido trataram de sair correndo em busca de socorro. Gente que passava por perto veio ver o que estava acontecendo e ela sem qualquer sinal de remorso foi ter de volta seu serviço. Passado pouco tempo a Serragem toda estava sabendo. Correram até sua casa, mas a criminosa ainda estava entretida com seus guardados na beira do rio. O delegado promoveu uma busca e logo em seguida negra Lurdes estava presa. Mas sua prisão deu muito trabalho aos soldados.
Quando chegaram à beira do rio ela estava comendo uma banana com farinha. O soldado se aproximou e deu voz de prisão. Ela nem se mexeu de onde estava. Ele repetiu. Ela calada comendo sua banana fez de conta que não era com ela. Os outros dois soldados fizeram menção de avançar sobre ela. Num salto que mal comparando ao de um gato, negra Lurdes saltou por cima da trouxa e tal e qual capoeira apareceu com o canivete em ponto de enfrentamento. Mas o comandante da tropa correu a mão na arma de fogo e atirou pra o alto. Vendo a desvantagem iminente ela recuou. Agarrada pelos cabelos acabou sendo amarrada, mas antes, num descuido, mordeu um dos soldados.
– Negra danada essa Lurdes! Por essa tu me paga!
Trazida pra delegacia e com toda a gente de Serragem vendo aquele reboliço, negra Lurdes de tão enfezada espumava pelos cantos da boca. O delegado estava tomando uns apontamentos e segurando uma xícara de café quando aquele tropel de gente entrou de sala adentro. A criminosa estava com a roupa rasgada e suja de areia, tal foi a brutalidade dos soldados pra aquela diligência. Pereira de Souza mandou que trancassem a negra enquanto terminava seu serviço. Era o tempo necessário pra que parasse de estrebuchar.
Depois quando lá fora a multidão tomava os seus que fazeres, ele foi ver de perto sua presa. Ela estava sentada num canto da cela olhando e apurando o ouvido. Queria com aquilo tomar pé de como estava o movimento. O delegado foi chegando de mansinho e bateu com a chave na grade. Ao barulho ouvido ela levantou os olhos e encarou seu desafeto. Negra Lurdes não era de em qualquer momento levar desaforo. Havia crescido levando sopapos e mais sopapos da vida e não seria ali e naquele momento que iria ciscar pra trás.
– A senhora, dona Lurdes, sabe por que mandei lhe prender?
– Num sei. E mesmo que soubesse não respondia. Só sei que buliram comigo e comigo ninguém bole!
Trecho do livro Serragem, de *Pádua Marques. Membro da Academia Parnaibana de Letras, cadeira 24, romancista, cronista e contista.