La chanson parfaite.

*Nailton da Silva Rodrigues.

Fora numa tarde. O vento ausente.

Hora sim, hora não.

E um ar úmido e fresco

Com uma xícara de chá, hortelã, o predileto

Eu ouvia uma canção.

E no intervalo em que encontrava os lábios na borda áspera da xícara e soprava o líquido amado e morno, a canção dizia: “sous terra!”.

Até que toquei o lábio na hortelã aquosa, senti queimar.

E a canção dissera: “tu dors enfim”.

Fora como um beijo em meu futuro.

Pus a mim mesmo em repouso.

Mas não muito tempo passou,

Foi-se assim alguns poucos segundos de paz.

*Naiton da Silva Rodrigues, estudante do curso de História na UESPI, campus de Parnaíba. Foi medalhista de prata em 2016 na Olimpíada Brasileira de Língua Portuguesa.

*Nezinho Doido.

Nunca gostei do jeito dele olhar pras pessoas. Parecia que tinha agulha espetando o couro. E era calado. Era de ficar daquele jeito por um bom pedaço de tempo até que alguém puxasse assunto de seu interesse ou perguntasse sua opinião. Diziam que conversava com gente morta. Aquilo causava medo até em gente grande, quanto mais em gente miúda, assim feito nós naquele tempo. E muita era gente que procurava ele pra modos encomendar rezas contra mal olhado, doenças de toda espécie, coisa de quebranto.

E pra gente grande, reza pra encontrar coisa perdida, sorte e fortuna em serviço e viagens. Dava medo olhar praquele homem mais seco que nem galho de goiabeira, os olhos fundos e cravados nas coisas com aquele chapéu sempre enfiado até a altura das orelhas. Nunca, diziam aqueles mais velhos, mostrou interesse de ter mulher e filhos. Ele mesmo lavava, passava as roupas, cozinhava, lustrava a casa que nem a mais devota das criadas.

Mas também pouca gente teve dele permissão de entrar da porta pra dentro. E nem adiantava a insistência. Os olhos duros ficavam mais duros ainda e o visitante até sentia um assim arrepio de frio naquele feito sol a pino. Daí, com aquele sobrosso se tratava logo de escapulir sem mais ver. Coisa de meter medo até em padre de batina com o cordão de São Francisco. Credo em cruz.

Nezinho Doido. Falavam desse jeito pelas costas, mas na frente era “seu” Nemésio. E nem adiantava procurar saber de quem era filho ou neto pra se dar nome de família. Era coisa maior que segredo ou adivinhação.  Gente muito antiga dizia que ele veio em companhia de uns retirantes ainda rapazinho, mas sempre esquisito. Olhando pra o chão como estivesse procurando dinheiro ou medalha perdida.

Ninguém soube até hoje se tinha ou onde guardava dinheiro, o ganho nas rezas e benzeduras. Certeza mais que certa mesmo é de nunca ter sido visto colocando um vintém em sacola de igreja. E de certo que nunca haveria de entrar no céu por conta da mão fechada. Padres não gostavam dele. Diziam que era espírito ruim. 

Morava numa casa pequena. Quarto e cozinha eram tudo. Até de onde se dava pra ver, era limpa, mas sempre de porta e janela fechada. Aquele homem não poderia nunca ter feito mal a ninguém. Não tinha jeito de gente ruim. Isso mesmo não! Era manso demais pra ter um dia sido mau. Se bem que, como diziam os mais antigos, gente que anda ou andou pelo mau caminho não tem estrela na testa. Até houve suspeita de que Nezinho Doido pudesse ser estrangeiro. Desses que metem a cara no mundo e passam anos e mais anos sem dar notícias pra família.

Talvez até um filho de gente rica da França, Espanha ou Portugal. Talvez um cigano desgarrado do bando. Quem sabe andou escondendo fortuna todos esses anos ou matou alguém por conta de mulher ou dinheiro. Ninguém queria apostar um vintém que fosse quando alguém tocava nesse assunto. E assim a coisa ia passando. De vez em quando aparecia alguém tentando levantar suspeita sobre alguma pista que desse naquela vida mais que misteriosa.

Depois deixavam de mão, acontecia alguma coisa de relevo e Nezinho era deixado de lado, esquecido. Mas havia sempre alguém mais afoito. Desses de se ocupar de guarda dia e noite na inventiva de levantar aquele manto e ver finalmente o que debaixo havia de estar escondido.

Nezinho era de muita cautela em se tratando de sua vida e de seu passado.  Por isso mesmo acabou causando inquietação em muita gente. O delegado foi uma dessas pessoas. Usando e abusando da autoridade, um dia arranjou de prender aquele homem e arrancar dele alguma confissão. Eles se cruzaram na entrada da praça e o delegado pediu os documentos. Na ausência do pedido deu voz de prisão e levou para a delegacia. A notícia correu rápida e em menos de um quarto de hora estava o maior alvoroço a tomar conta da cidade.

Vai ver que era até fugido da justiça feito um criminoso metido em coisa de política que agora vivia se metendo a doido pra ir passando? O prefeito Salomão Belarmino chegou a encomendar investigação nas altas esferas do governo estadual pra saber e tirar aquilo tudo a limpo. Mas passados alguns meses entre idas e vindas de seu secretário, teve resposta de que nada se sabia sobre o indigesto forasteiro, como dizia de boca cheia o padre Cristóvão. Daquela forma era melhor ir deixando a coisa andando e só tomar providência quando houvesse risco de ordem.

Aquilo não estava certo não. Gerava intranqüilidade nas pessoas. Pereira de Souza foi ter com Demerval Mascarenhas, o promotor de justiça. Da conversa entre os dois veio a idéia de armar uma emboscada. A coisa já estava chegando aos ouvidos das autoridades na capital e mais dia menos dia acabaria em destroço. Seria o fim de muita gente.

Ficaram sabendo que uma mulher tinha o filho pequeno às portas da morte e havia de levar com certeza para benzedura com Nezinho. O homem tido e havido como santo por toda aquela gente recebeu a mãe e fez seu serviço: recomendou um chá de erva doce e banho de carrapicho. Dois dias se passaram e a criança piorou. A mãe no desespero correu a dizer pra tudo o que era ser vivente que aquilo que o curandeiro havia receitado saiu como veneno.

O menino apareceu de repente com uns calombos tomando por todo o corpo e sem vontade de comer qualquer que fosse a comida acabou se desfazendo em merda. Daí pra prostração e a morte foi como dar de olho de machado em cangote de porco. Culpa de quem? Nezinho Doido. Foi o que correu de boca em boca assim de uma hora pra outra. A notícia chegou aos ouvidos de Pereira de Sousa e Demerval Mascarenhas.

Mais que depressa os dois acharam de encerrar a última parte do trato e passaram a caçar o forasteiro por tudo o que era canto. Toda aquela gente tomou o rumo da casa de Nezinho Doido na intenção de ver o curandeiro sofrer alguma penalidade. Armados de paus e pedras, foices e até espingardas se puseram a gritar e a exigir reparo. Ele, sem ter como escapulir acabou se entregando.

Na delegacia a multidão era grande e cheia de alvoroço. Como podia, assim de repente, aquele homem desconhecido e misterioso, que até pouco tempo era tido e havido como enviado de Deus pra curar doentes, dar conselhos e encaminhar ao caminho do bem muitas moças perdidas, estava ali, debaixo de ordem sendo interrogado feito ladrão e assassino e, se solto, correndo risco de ser esmagado debaixo de paus e pedras? O delegado fez tudo o que pode pra achar um rasgo de culpa naquele pobre diabo.

– Me diga nome e onde mora, de quem é filho e ocupação.

– Nemésio. Nemésio dos Santos.

– Só isso de nome?

– Mais não posso inventar.

– E onde mora Nemésio dos Santos?

– Rua dos Alípios, 150.

– De que família e ocupação?

– Não conheço nem pai e nem mãe. Vivo e me sustento de meu trabalho.

– E que ocupação é essa, seu Nemésio?

– De reza.

– De reza? E isso lá é ocupação de gente?

– Não sei pro senhor, mas pra mim é coisa de que me sustento. Dou alívio pras pessoas. Mulher, velho e menino pequeno…

– E seu Nemésio acha que o delegado aqui, Pereira de Souza, acredita numa potoca destas? Me adiante cá uma coisa: o que foi mesmo que deu pra o menino?

– Coisa de mato. Tudo erva sem risco. Além do que é segredo que nem a Deus Nosso Senhor havera de contar.

– Pajelança. Só pode ser coisa de pajelança! Seu Nezinho está me tirando de cima dos trilhos da paciência! Acho bom ir abrindo o bico e contando tudo!

O interrogado permanecia calado e olhando pra o chão. O delegado agora começava a ficar impaciente. Daí pras ameaças e ofensas foi um pulo. Lá fora a multidão esperava uma resposta. De vez em quando do meio daqueles homens e mulheres enfezados partia uma palavra mais grosseira. Ali estava o pagamento pelo bem que tantas vezes Nezinho achou de fazer, muitas vezes sobressaltando uma noite de sono pra atender ao pedido de uma mãe aflita.

– Dê cá esta mão.

Nezinho estirou bem devagar a mão esquerda e ficou esperando que o delegado desse prosseguimento naquele interrogatório. Agora começava a suar frio e a tremer as pernas e os queixos. Pereira de Souza estava procurando uma forma de intimidar. Havia de ter uma forma, um sinal, qualquer coisa que fizesse com que, de uma hora pra outra desandasse.

– Me dê cá a outra mão, seu Nezinho!

O delegado procurava ganhar tempo pra alguma coisa que só ele haveria de saber e executar. Quando o curandeiro estirou a outra mão, Pereira de Souza se pôs a meditar por alguns instantes. O jeito era que não tendo encontrado qualquer sinal de culpa no preso o deixasse ir embora. Vai que acontecesse um motim e aquela gente lá fora invadisse a delegacia? O plano traçado entre ele e o promotor Demerval Mascarenhas foi por água abaixo. Realmente Nezinho era mais inocente do que culpado.

Durante muitos e muitos anos deixou que aquela gente ignorante acreditasse no que dizia sobre curas. Nunca desacatou quem quer que fosse. Foi mais usado do que pano de chão, quando patrocinava suas maluquices. Se ele, Pereira de Souza o deixasse ao relento da lei haveria de se ter com gente mais graúda. Chamou uns dois soldados e deu ordens que levassem Nezinho em segurança até a porta de casa. As ordens eram de que arrumasse suas trouxas e fosse embora sem mais tardança.

O delegado tinha em planos que, Demerval Mascarenhas, homem por demais ocupado nas lides do cartório, nem haveria de desconfiar que aquela fuga permitida fosse simplesmente uma forma de, caso alguma coisa mais grave acontecesse com o curandeiro, a culpa recairia em cima daquela gente. E no meio de tanta gente zangada na rua não haveria como apontar este ou aquele autor. Depois de um rasgo de tempo em que coçou o queixo várias vezes, disse que Nezinho Doido podia ir embora.

– Vá embora. Vá embora de vez, seu fresco! 

*Trecho do livro Serragem, de Pádua Marques, ainda não publicado.

A FOTO

A D. Mazé era daquelas criaturas que tinha medo de tudo. Quando via uma barata era um Deus nos acuda. Subia nas cadeiras, nas mesas, gritava e chorava ao mesmo tempo. Rato e rã, então? Ainda era pior o chilique. E de defunto? Quando morria alguém conhecido passava uma semana sem dormir. Ficar só no quarto, Deus me livre. Velório não ia de jeito nenhum. Fazia a visita somente na missa de sétimo dia.
Certa vez, morreu um parente seu, bem próximo. Foi uma situação horrível. Além da ligação familiar eles tinham uma amizade muito forte. Teria que se fazer presente no velório.
A medrosa senhora, sofrendo por antecipação ficava imaginando aterrorizado o quadro que lhe esperava. O calor das velas, o cheiro das flores, as vozes das pessoas rezando o terço, uns chorando segurando a mão do falecido, outros arrumando os cabelos, outros alisando o rosto. Que coragem!
Tentava desviar o tal pensamento da cabeça enquanto se arruma. E pedia aos seus “Santos” coragem. Precisava dominar o medo. Tirou seu vestido preto de velório do guarda – roupa. Passou no ferro para tirar o cheiro do mofo, colocou uns óculos escuros para disfarçar os olhos de espanto e foi-se. No caminho planejava: – Vou me posicionar bem distante. Assino o livro de visitas para testemunhar minha presença e só falo com quem passar perto de mim. Lá, próximo ao caixão não vou mesmo.
O plano de D.Mazé deu certo. Outras pessoas foram morrendo: amigos, parentes, vizinhos e ela seguia o mesmo esquema. Sempre tinha uma comadre que lhe convidava para ver o defunto, mas ela arranjava um desculpa qualquer. E ficava admirada quando via alguém levantar o véu que cobria o rosto do morto, arrumar o algodão do nariz. Nossa! Jamais faria isso.
Um dia morreu um irmão de sua afilhada que morava afastado da cidade. A mãe chegou a procura de D.Mazé em prantos. Gente pobre chora mais por morto do que os ricos não sei o porquê. Mal podia narrar os acontecimentos, soluçava, estava nervosa demais. Depois de tomar alguns goles d´água foi se acalmando e contou que o menino morreu de lombriga. Tava doente há muitos dias, não comia, amarelo, sem ânimo. Quando foi levar ao médico estava muito fraco e não resistiu. A história não estava muito bem contada, não se sabe se era por ignorância ou nervosismo. O certo é que D.Mazé deu pra ela certa importância que dava para comprar a mortalha, o caixão e as comilanças para as pessoas que fossem para o velório.
E a pobre senhora foi-se. A dor daquela mãe era tamanha. Via-se pelo seu semblante um coração partido. D.Mazé sabia que pouco tinha feita pela sua comadre. Mas além da parte material, também contribuiu com palavras de consolo e foi solidária com o sofrimento daquela querida amiga. Faria qualquer coisa para amenizar aquele sofrimento, mas o quê?
Ao entrar numa loja de tecido D.Mazé encontra-se novamente com a comadre. Estava comprando a mortalha com o dinheiro que ela havia dado. Mais uma vez entre lágrimas as duas se abraçam e mão do defunto diz:

  • Comadre, a senhora está sendo muito boa comigo, mas posso lhe pedir mais um favor?
  • Claro, faço qualquer coisa que a senhora pedir.
  • Comadre, eu quero ter última lembrança de meu filhinho, por favor, tire uma foto dele no caixão.

MARIA DILMA PONTE DE BRITO APAL
CADEIRA 28
PATRONO LÍVIO LOPES CASTELO BRANCO
1º OCUPANTE HUMBERTO TELES MACHADO DE SOUSA

E assim eu vou seguindo…

 

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DO LIVRO “O QUINTO” – INÉDITO
MARIA DILMA PONTE DE BRITO-APAL
CADEIRA 28
PATRONO LÍVIO LOPES CASTELO BRANCO
1º OCUPANTE HUMBERTO TELES MACHADO DE SOUSA

Cadê o meu sorriso?

Era com ele que me comunicava

Enfeitava o meu rosto

Mostrava minha alegria e minha empatia.

Cadê o batom?

Ora avermelhado, ora perolado.

Contornando os meus lábios

Sempre sorridente e apaixonado.

Cadê o meu abraço?

Apertado, juntinho

Que antecedia aos beijinhos.

Cadê meus amigos?

Que não posso tocá-los.

Que nem vejo seu rosto.

E nem sinto seu gosto.

É ela, a máscara,

Que esconde meu sorriso

Que não me permite o batom

Que faz desconhecer meus amigos   

Cobre o meu rosto, o meu riso.

Preciso aprender a falar com os olhos

Abraçar sem tocar

Em tempo da Covid 19

Ela, a máscara, é essencial.

E nos livra do mal.

E assim eu vou seguindo

Esperando tudo passar.

Na esperança de deixar meu rosto livre

De muito em breve um  sorriso escancarar

Quero apresentar os meus lábios coloridos

E agradecer a Deus por ter sobrevivido.