Pregado de panela.

*Pádua Marques.

Agora era descer de vez daquela canoa e esquecer o que havia ficado pra trás. Estava na Parnaíba, terra onde ouviu dizer que corria dinheiro, tinha movimento e mais gente, onde podia estudar e seguir carreira num emprego bom sem ter que bater cabeça o resto da vida. E estava trazendo uma carta de recomendação de Benedito Cordeiro, amigo e compadre de seu pai, pra ser entregue a seu Zeca Correia, dono do Moraes, dono de carro de passeio e até de navio.

Se Deus quisesse havera de se arranjar num emprego naquela fábrica de sabão e de óleos. Se não desse no Moraes, que pelo menos fosse nalgum armazém na rua Grande ou nas próximas, aquelas ruas onde tinha mais comércio. Mas se também não desse, que fosse alguma colocação mais embaixo, porque depois e com muito trabalho, cuidado e coragem, iria chegar mais perto da porta de um escritório e de lá pra dentro era coisa de um pulo. Martinho Cardoso era de pouca leitura, mas era esperto.

Do porto Salgado com todo aquele movimento de início de tarde, Martinho foi direto pra uma pensão perto da igreja de Nossa Senhora das Graças e de lá se avistava também a igreja do Rosário dos Pretos, vizinha do Hotel Parnaíba, algumas casas de comércio, outras pensões e o Banco do Brasil. A pensão Nossa Senhora dos Remédios, de um velho de Buriti dos Lopes, Chagas Caetano, era pequena, mais barata que o Hotel Carneiro. Tinha uns seis quartos, um salão maior com mesas e cadeiras pras refeições, um banco com dois potes e seis canecos, uns quadros de santos e uns tamboretes espalhados pra quem quisesse  se sentar.

Depois de ser atendido na entrada por um rapazinho de uns quinze anos, de rosto azeitado e já apontando uma nuvem de bigode, Martinho foi informado que a dormida era em rede.  E ele trouxe a sua, larga e limpa, dois lençóis, pijama, três calças, cinco camisas, um paletó, seis cuecas, toalhas de rosto e de banho, pão de sabonete, escova de dente, uma flanela e escova pra lustrar os sapatos, dois pares de meias, pente de chifre, um potinho de brilhantina e uma navalha pra fazer a barba de vez em quando.

Martinho foi ver a cozinha lá no fundo de um corredor na esperança de encontrar ainda naquela hora alguma coisa pra comer. A canoa vindo de Araioses atrasou e o desembarque no porto Salgado foi demorado. Não queria ainda meter a mão nas economias por pouca coisa, tinha que regatear comida barata.  Os quartos, àquela hora da tarde, estavam com as portas abertas devido ao calor e ele viu outras pessoas, umas falando baixo. Num dos quartos um velho estava cochilando e a filha remexia numa mala.

E na cozinha lá no fundo, com algumas gaiolas de passarinhos, encontrou apenas uma mulher, a cozinheira, quase negra, e que quando ela perguntou o nome e de onde vinha, Martinho deixou ver que tinha os dentes estragados, as unhas escuras pelo trato com o carvão e as panelas, ficava se limpando todo tempo com um pano encardido, o sovaco descuidado e no pescoço, um rosário de contas azuis e brancas. A mulher puxou conversa e ofereceu os serviços do filho. O menino da entrada da pensão, também era engraxate perto do armazém de seu Franklin Veras, indo ter no porto Salgado, se precisasse.

Com o tempo Martinho ficou sabendo que o menino, o rapazinho fumava escondido da mãe. À tarde, quando servia o jantar dos hospedados e o sol mais frio descendo por trás dos carnaubais de Ilha Grande de Santa Isabel, a cozinheira e o filho iam embora tomando o rumo da Guarita, levando o sobejo limpo de algum prato ou o que havia sobrado de um galinha ensopada, guisado de panela, sopa, um pregado de arroz, panelada de bucho de boi com abóbora. A pensão ficava nos cuidados de Belarmino, sobrinho de Seu Caetano.

Em casa aquela comida era esquentada e servida pra os outros três meninos que ficavam o dia inteiro se entretendo na vizinhança e indo, quando muito, pra beira da linha do trem ou nas redondezas procurar gravetos pra acender o fogareiro, tão logo o irmão engraxate e a mãe chegassem do serviço. O marido? Esse a cozinheira largou havia tempo! Não queria nada, um vagabundo. Agora vivia amigado com outra mulher na Coroa. Até apanhava dela. Era o que ficava sabendo pela boca dos outros de vez em quando.

Martinho depois de arranjar com a cozinheira um café e um pedaço de cuscuz de milho, veio pra porta da pensão ver aquele movimento de fim de tarde na Parnaíba. Passavam agora automóveis no rumo da Nova Parnaíba, onde moravam os abastados, os ricos comerciantes e donos de indústrias, médicos, advogados e juízes. Outros desciam no rumo da rua Grande indo dar no Macacal. Seu Zeca Correia devia decerto ter um automóvel daqueles. E era esse homem que iria lhe estender a mão, tinha certeza.

Os dias passaram e Martinho ia se dando bem de ver a Parnaíba com aquele movimento todo do porto pra todas as ruas de cima e de baixo. Foi à missa na igreja de Nossa Senhora das Graças num domingo. Ficou olhando as pessoas importantes sentadas nos bancos da frente, as mulheres com as cabeças cobertas de véus, os terços de contas lustrosas, o perfume bom das roupas delas, as filhas, meninas silenciosas e muito bonitas, limpas e que em nada haviam de se comparar à cozinheira da pensão onde ele estava hospedado.

Conheceu um rapaz, de uns vinte anos pra cima, vindo dos Morros da Mariana, botador de água na pensão Nossa Senhora dos Remédios e nas outras, até na pensão de seu Nagib, o turco mão de vaca. Rapaz dado, falador, baixo, tinha o beiço de cima cortado, era fanho e gordinho. Sebastião o nome. E numa conversa e noutra o amigo novo de Martinho disse que, bem que gostaria de ser sacristão da igreja de Nossa Senhora das Graças. Ser sacristão deveria ser bom.

Iria comer do bom e do melhor e na hora certa, tomar banho de chuveiro, comer sentado em mesa com toalha de renda, beber em copo de vidro, trabalhar pouco, talvez até andar de carro, no muito, ajudar na missa uma vez na semana, fazer algum mandado, uma compra aqui e ali, conhecer e ficar perto de gente rica e importante como seu Zeca Correia, doutor Cândido, Mirócles Veras, Raul Bacellar, José Narciso e ainda podia mexer nos livros do padre. Tinha ambição de subir na vida. Talvez até desse para seguir carreira. Tinha família pobre que passava necessidade nos Morros da Mariana.

*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras, romancista, cronista e contista.

CANTO SOLITÁRIO

Antonio Gallas

Num canto, em meu canto, solitário canto.

Canto as tristezas de um amargo pranto.

Canto a dor, a saudade de um amor e tanto

Que me deixou a sofrer em desencanto.

Canto para expulsar do peito a dor,

O sentimento atroz da separação.

E enquanto canto, alivio o ardor

Da angustiante dor dessa paixão.

E assim cantando vida afora sigo

A procurar talvez, outra ilusão,

Ou encontrar, quem sabe, um peito amigo.

Senão, irei cumprir com meu fadário,

E ao cantar então qualquer canção

Cantarei o meu canto solitário.

Parnaíba,10/07/1980

Tia Zezé: Um Exemplo de Amor à Vida e à Educação!

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A pequenina gigante contra os terríveis olhos de desprezo…

    Escondida do mundo… Ela assim pensava, porém por debaixo da mesa estava… A imaginar mil e uma histórias, no intuito de escapar do tédio que era estar ali. Entre um curiar e outro, tentava entender como poderia existir, gente de toda sorte e vaidade, alguns carregando olhos de sinceridade, outros, uma terrível face de desprezo… E ela ali, pequenina (desencontrada), em meio àquela sala, que ouvia, vez por outra, alguém dizer que era de aula… Mas que nem por um momento, até então, acalentava o seu mais que inquieto coração.

    Apenas ir, comer, fingir e partir. Era assim no colégio, ao menos até os nove. Até que um dia (e que dia!), uma mulher revestida de coragem e paciência resolveu fazer mais que sua obrigação… Mergulhou fundo nas águas geladas, sem tanque de oxigênio e sem temer os perigos que pudesse haver em território tão obscuro, à procura daquela menina… Na verdade não se tratava de rio, e nem lago, mas o velho esconderijo, debaixo da mesa… O fato é que ela foi encontrada, e de lá, resgatada. Conheceu pela primeira vez, uma aula de verdade. Uma aula com amor.

    A partir daquele dia a escola passou a ter cor, a fazer sentido, até mesmo sabor, quem diria… Não o suficiente para fazer os problemas do dia desaparecerem, mas agora ela sentia que dava pra resolvê-los… Mesmo que demorasse e assim custasse inúmeras gotas de suor e criatividade. Ela passou a enfrentar o mundo, do seu jeito. E enfrentar para ela sempre foi lembrar de uma inspiração eterna, que mesmo o tempo (por vezes vilão) não apagou… A lembrança da adorada mãe, que sozinha criou seis e mais essa pequenina (traquina), que gostava de observá-la, educando e cuidando de todos, sem distinção ou crueldade, apenas a realidade, exposta a cada um e antes de dormir, as histórias de trancoso, para aguçar ainda mais a curiosidade, enquanto divertia e a fazia esquecer a infância pobre, porém honesta.

    E de histórias que existiam e outras nem tanto, a juventude chegou, e com ela, outros dilemas… Fosse no bairro de origem, ou por outros que morou, passou dias, ou até horas, vez por outra tropeçando, caindo, sem saúde, sem chão e ainda assim, a contragosto daqueles mais desumanos, lembrando do quanto é forte, e se reerguendo, ficando de pé, e ensinando, aprendendo, vencendo, se formando… E tendo a noção, desde sempre, que é preciso de alegria, muita alegria (mesmo na dor) para derrotar o cruel inimigo preconceito… Tendo a força da lembrança da mãe, e de todos aqueles que já apoiaram e a acompanham como combustível… E inspirada naquela professora, que um dia mergulhou, sem pestanejar, fazendo ela ver que também poderia resgatar tantos outros meninos e meninas, que a vida tratou de magoar (a vida não, os seres com olhos de desprezo) e que escondidos estão, estes meninos e meninas, à espera, mesmo sem saber, de alguém grandioso como ela, que um dia pode chegar, com uma bolsa carregada de sonhos e um punhado de esperança. E os salvar.

Claucio Ciarlini (2017)

IMG-20170211-WA0025Nota: Maria José Veras Ferreira, mais conhecida como Tia Zezé ou a pequenina gigante deste breve conto inspirado em sua vida, enfrentou preconceitos, obstáculos e pedras no caminho… Superou todos!  E é um exemplo para quem já fez parte de sua história (os que possuem coração). Nasceu em 10 de abril de 1965, é parnaibana e residiu boa parte de sua vida no Bairro São José, tendo morado também em outros lugares e hoje no Bairro Pindorama. É graduada em Pedagogia e especialista em Educação Infantil, tendo atuado em várias escolas e faculdades (tanto públicas, como particulares) sempre com o mesmo empenho e entrega, a citar o Colégio Nossa Senhora das Graças, onde lecionou por 25 anos. É referência na área de educação e cultura de Parnaíba, também é poetisa, roteirista, escreveu e dirigiu várias peças em escolas. O nome da professora que a resgatou e lhe serviu de inspiração é Ana Teles e o nome de sua mãe: Teresinha de Jesus Pascoal Veras. Os irmãos: Francisca, Socorro, Antônia Maria, Maria Ozanete, Regina Célia e José Carlos. Os filhos: Darcon e Dalila. Sua caminhada pessoal e profissional, que tive o privilégio de conhecer através de nossas conversas (que muito me emocionaram), é uma grande lição de resiliência e de amor à sua cidade e à Educação, numa linda e vibrante trajetória que precisaria de inúmeras páginas… Um livro! E que livro seria… Quem sabe um dia!