DIÁRIO -30/04/2020

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DIÁRIO

[O dom supremo]

Elmar Carvalho

30/04/2020

Estava lendo ontem O Dom Supremo, que é o título como ficou conhecido célebre sermão, fundamentado na carta de São Paulo aos Coríntios, proferido por Henry Drummond, em formato virtual da Amazon/Kindle, com tradução e prefácio de Paulo Coelho, quando fui abordado pela Fátima sobre um assunto relativo a preconceito e intolerância.

Lembrei-me, então, de uma conversa que tive, faz quase vinte anos, dentro de um velho e empoeirado ônibus, alta noite, com o magistrado João Batista Rios, quando seguíamos para as nossas remotas Comarcas, ele, a de Bertolínia, eu, a de Ribeiro Gonçalves, ainda mais distante. Na época eu tinha dúvida sobre o que seria mais importante, se a caridade, se o amor.

Muitos entendiam que a caridade seria superior, porque era revestida, digamos, de uma “ação prática”, concreta, ao passo que o amor seria um “mero” sentimento, sem efetividade nenhuma. Hoje, fundamentado na epístola I Coríntios, de São Paulo, e no sermão O Dom Supremo, de Henry Drummond já não tenho dúvida nenhuma.

Aliás, a bem da verdade, desde essa conversa com o amigo Batista Rios passei a não ter mais essa dúvida, pois passei a entender que o amor, o amor verdadeiro, leva uma pessoa aos gestos largos e generosos, aos grandes sentimentos, que ele parece amalgamar, e que impulsionam o ser humano a cometer boas ações e a ter bons comportamentos, inclusive os da generosidade, da gentileza e da humildade.

No prefácio, colho a informação de que quem iria falar era o mais famoso pregador da época, que no momento se sentiu esvaziado, sem inspiração para o mister. Ele, ato contínuo, pediu a um jovem missionário que o substituísse, o que provocou, sem dúvida, uma forte frustração na assistência, que se preparara para ouvir o maior orador sacro de então.

Henry Drummond, o jovem e inexperiente missionário, que regressara da África há pouco tempo, e que ainda buscava definir a sua verdadeira vocação, sem dúvida tocado pelo Espírito Santo, produziu de improviso um dos mais magníficos sermões de todos os tempos, ainda mais admirável por ser claro e belo, embora profundo em sua análise do amor, o dom supremo ou summum bonum.

Em seu notável sermão, Henry Drummond afirma que “O amor é a regra que resume todas as outras regras”, e que é o “mandamento que justifica todos os outros mandamentos”. Explica que o amor é composto de nove ingredientes: paciência, bondade, generosidade, humildade, delicadeza, entrega, tolerância, inocência e sinceridade. Justifica todos esses componentes com citações do texto de S. Paulo.

Com relação à tolerância, transcreve que o amor “não se exaspera”. Considera a intolerância como uma “verdadeira falha de caráter”, e não como um pecado inerente à natureza humana, que dificilmente poderíamos corrigir, e acrescenta que a Bíblia, em várias outras passagens, coloca a intolerância “como o elemento mais destruidor da nossa maneira de agir”, para em seguida afirmar:

“O que mais impressiona é que a intolerância, o preconceito, está sempre presente na vida de pessoas que se julgam virtuosas. Geralmente é a grande mancha numa personalidade que tinha tudo para ser gentil e nobre.”

Consta que Henry Drummond, ao ser designado de forma inesperada para fazer a sua prédica, “pediu emprestada a Bíblia de um dos presentes e leu um trecho da carta de São Paulo aos Coríntios”. Julgo de bom alvitre, para reflexão e como um arremate a este registro, transcrever os dois versículos iniciais do trecho que ele leu, e que lhe serviu de mote para a glosa genial do famoso sermão:

“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.

E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. [1 Coríntios 13:1,2]”

Os três meninos e o bicho voador.  

Por Pádua Marques (*) 

 

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Mais do meio pra popa da canoa estava Felisberto, o mais velho dos três. Tinha de doze pra treze anos, calção encardido, os bicos dos peitos inchados, já uma risca de bigode por cima do beiço, olhos negros e duros quando fitava os outros e as coisas. Gostava de saltar da proa das canoas e mergulhar na água pra logo depois sair lá longe cuspindo e achando graça.

Filho terceiro de Raimunda, uma mãe solteira, no Curre, queria ser estivador, pra ganhar dinheiro e sair nos fins de semana pelos cabarés. Já engrossando o talo da pinta, vivia coçando as virilhas e gostava de se gabar de ter visto mulher nua com os homens fazendo saliência. Os outros ouviam e ficavam entre encabulados e admirados.

Os três meninos ficaram ali dentro da canoa esperando o acontecimento. Dentro de mais algum tempo, por volta do meio dia, um sino deu aviso de uma batida pra depois, um ronco alto e causando admiração, medo em alguns e apreensão em Celso Nunes. O Baby-Clipper S43 da Pan American Airways tocou a água do rio e veio atracar direitinho no cais flutuante. Levou algum tempo até que umas dez pessoas entre homens e mulheres, pessoas bem vestidas, de sapatos lustrados, os homens de bengala e chapéu e terno de linho branco, desembarcaram e foram recebidas com muitas palmas.

 

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João Batista, Felisberto e Sebastião Capote Valente ficaram ali dentro da canoa, admirados e com medo daquele bicho de ferro e que soltava fumaça e de lá ouviram sem entender do que se tratava aquela cerimônia, todo o discurso de Mirócles Veras ao lado da pianista Guiomar Novaes. A artista seguia pra Miami, Texas e Nova York, nos Estados Unidos da América do Norte. O avião e tudo nele causaram uma inquietação e ao mesmo tempo contentamento.

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Os três meninos do Curre taparam os ouvidos e fecharam os olhos. Nunca na vida haviam imaginado alguma coisa parecida. Estavam acostumados a ver barcos, vapores e outras embarcações menores atracando no cais do porto Salgado, mas nunca uma que voasse e andasse por cima da água ao mesmo tempo e de dentro saísse gente e bagagens. Aquilo era muito pra acreditar! Passaram a contar as pessoas, a quantidade de carros, mas nada fazia acreditar que fosse se repetir com outros meninos.

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Logo em seguida o sino tocou outra vez e logo apareceu outro avião, bem maior, o Commodore. O primeiro, o Baby-Clipper S43, na mesma pisada levantou voo e foi embora levando outros passageiros, entre eles a pianista Guiomar Novaes. Tudo aquilo foi motivo de encantamento pra os três meninos. Mesmo de longe pouco deram atenção aos discursos, pra quantidade de carros vindos de Parnaíba.  Quando tudo passou e aos poucos o Rosápolis foi ficando silencioso naquele inicio de tarde, João, Felisberto e Sebastião, os três foram tomando o rumo de casa. O medo havia acabado, mas aquele bicho de ferro ficou batendo na cabeça deles pra nunca mais sair.

*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras, romancista, cronista e contista.