SÓ NO BEIJO
Não podemos, em época alguma,
deixar que façam nossa vida louca.
É necessário que cada um assuma,
que não temos mente oca.
Então, agora e sempre, em suma:
“que só no beijo é que fechemos a boca”
SÓ NO BEIJO
Não podemos, em época alguma,
deixar que façam nossa vida louca.
É necessário que cada um assuma,
que não temos mente oca.
Então, agora e sempre, em suma:
“que só no beijo é que fechemos a boca”
D.Glorinha é daquelas que acredita em tudo que lhe ensinam. Coloca fita vermelha no pulso do seu netinho pra não pegar quebranto. Tem em casa chá para todos os males. De folha de goiaba, passa dor de barriga; de malva, é bom pra tosse; chá verde melhora a memória; de camomila acalma os nervos. Ela tem fé, tem crença em tudo e em todos.
Em filosofia, mais especificamente em epistemologia, crença é um estado mental que pode ser verdadeiro ou falso. Ela representa o elemento subjetivo. A fé não é baseada em evidências físicas reconhecida pela ciência. A fé é associada a experiências pessoais e pode ser transmitida a outros através de relatos.
Na casa de D.Glorinha não faltava vick vaporub. Se alguém tosse, vick na garganta. Nariz entupido vick resolve. Para pancada uma massagem de vick alivia a dor. Os filhos de D.Glorinha aprenderam muito bem as múltiplas utilidades do vick vaporub. E não passavam também sem ele.
A filha caçula dessa respeitável senhora, Manuela, que já adentrava aos 12 anos de idade, nasceu e viveu todos esses anos com esse “Santo” remédio a protegendo.
Certo dia, D. Glorinha e todos de casa se espantaram com o grito de Manuela. Um grito de dor e desespero. Procuraram a menina por todo casa e a encontraram no banheiro. Sentada no vaso sanitário com um frasco de vick vaporub na mão.
A mãe pediu que todos se retirassem e ficou a sós com a filha que chorava desesperadamente. Enxugando o suor de seu rosto e tentando acalmá-la indagou:
– Minha filha, o que está acontecendo?
– Mãe, esse vick não serve para nada.
– Por que você está dizendo isso?
– Olhe desde a hora que me acordei estou sangrando. É um pouquinho ali e outro acolá. Esperei que estancasse. Mas está aumentando a cada instante. Aí resolvi passar vick para sarar. Está ardendo muito, queimando tudo aqui em baixo e veja, não deixou de sangrar. Glorinha coça a cabeça, abraça a filha, e tenta explicar.
– Minha filha, nesse caso o vick não resolve mesmo. Você vai ter que aguardar uns três dias para deixar de sangrar. E a partir de hoje todos os meses você terá esses dias. E vick desta vez não vai resolver.
“Mulher é bicho esquisito, todo mês sangra”.
DO LIVRO VOU TE CONTAR – 2008
MARIA DILMA PONTE DE BRITO
CADEIRA 28 DA APAL
PATRONO LÍVIO LOPES CASTELO BRANCO
1ºOCUPANTE HUMBERTO TELES MACHADO DE SOUSA
*Pádua Marques.
Sebastião e Simplício vieram da parte de cima avisar que o doutor engenheiro Miguel Furtado Bacellar estava chegando ao acampamento e eles tinham que esconder as garrafas de aguardente que estavam dentro dos matulões. Se ele pegasse os homens bebendo e se embriagando no acampamento, decerto que seriam mandados embora e até presos. Os outros homens, dois ou três, foram se levantando e tomando o rumo dos petrechos de serviço, os facões, foices e machados e tomando o rumo do mato.
Uns mais à frente foram se limpando da areia do mato nos calções encardidos e mais outros foram derramando a bebida que havia sobrado daquela festa no local de trabalho. Logo em seguida chegou junto com outros altos funcionários, uns cinco ou seis, o engenheiro Miguel Furtado Bacellar. O encarregado do acampamento veio dizer que tudo estava em ordem, o serviço ia correndo bem e os homens estavam muito determinados, prontos pra acabar aquele serviço e esperar as novas ordens vindas lá de cima.
Foi chegar e foi olhando como estavam os cassacos. Olinto trouxe pra perto o filho Pedro, um meninote de uns quatorze anos de idade. O pai, agora doente, tossindo, enfraquecido, levou pra derrubar mato junto com ele. Livrou de mandar pra o Arsenal de Marinha, no Curre, feito o outro, Simão, de dezesseis anos pra mais, e que dele não se sabia se ainda era vivo, morto ou se ganhou o mundo. Nos momentos em que o pai se danava a tossir e escarrar sangue, o menino corria no saco e vinha de lá trazendo uns panos pra limpar.
Miguel Furtado Bacellar passou demorado pelo acampamento de palha naquele meio de mato. Veio tomar pé dos serviços. Os homens ficaram se olhando e esperando as ordens pra continuarem o serviço. Onofre, rapaz solteiro, vindo do Perypery, estava inquieto. Havia deixado a mãe viúva e duas irmãs. O que recebia era guardado pra fazer uma casinha no Bebedouro, em Parnaíba, terra onde pra ele, corria muito dinheiro. Ao seu lado estava Anísio, vindo de João Peres, Maranhão, casado há uns cinco anos com Maria do Livramento, uns dois anos, na Tutoia. Quando se embriagava se punha a cobrir a mulher de nome feio e lhe cobrava ciúmes.
Honorato, como sempre estava um pouco afastado. Caboclo de uns quarenta anos, baixo, sisudo, arredio, entroncado. Diziam que era do Maranhão, São Bernardo, e de lá estava fugido depois de ter matado um sujeito muito rico com uma mão de pilão e que vivia ameaçando sua família. Criava um cachorro, chamado Peixe, com quem andava pra cima e pra baixo, até dormindo com ele e ali de longe ouvia e via o movimento e as conversas do engenheiro e seus auxiliares.
Perto dos outros e sentado num tronco grande de sabiá, estava Pedro Ernestino, um negro retinto, vindo de Igarassu, no Pernambuco. Tinha as mãos grandes, peito largo, um dente de outro na frente e uma cicatriz no cano do braço. Alto e desconfiado com tudo, andava armado de faca no cós da calça encardida. Era, dizia, pra acalmar quem bulisse com ele. Já havia estado pelo Amazonas e pelo Pará, de onde saiu corrido só com a roupa do corpo. Miguel Furtado Bacellar entrou e ficou frente a frente com o velho Eleutério, quase cego de um olho, de pouco mais de cinquenta anos e mascador de quina. Em respeito pela idade o engenheiro, de pouco mais de quarenta anos, lhe apertou a mão e bateu de leve em seu ombro.
O mais velho do acampamento estava acompanhado dos dois filhos, João e Pedro, seus meninos, como dizia. Os meninos de seu Eleutério passavam o tempo de serviço de derrubar o mato entre a Parnaíba e Amarração, cantando embolada. Um dizia uma trova e o outro respondia na mesma pisada! Eram a alegria daqueles homens rudes, famintos e com sede, nus da cintura pra cima e armados de foices, facões, machados, se defendendo de sezão, toda sorte de doenças. Aquela teimosia de Miguel Furtado Bacellar, que coisa mais sem sentido! Meses, dias sob o sol e a chuva, espantando mosquitos, mordidos por marimbondos e abelhas, comendo feijão com carne salgada e farinha seca, angu de milho.
Homens que passavam semanas e meses longe de suas famílias. E aquelas três malditas léguas entre a Parnaíba e Amarração, naquela mata perigosa, a ponte de ferro vindo da Inglaterra pra ser montada no rio Portinho, onde morreram dois homens afogados e que ninguém deu conta. E ali perto alguns desses homens já fazendo casas de taipas no caminho da linha de ferro, na altura do Buraco dos Guaribas e mais pra cima, entrando de Macacal pra dentro. Aquele serviço que, ao que parecia, nunca teria fim!
Naquele dia de setembro de 1916 o acampamento dos cassacos nos serviços de mato na Estrada de Ferro Central do Piauí, estava entristecido. Silício, um companheiro, de uns trinta anos de idade, vindo de Piracuruca, morreu se esvaindo em sangue depois de ser mordido por uma cobra. Era um dos poucos que sabia ler, escrever e assinar o nome. Quando estavam descansando, ele se punha a escrever no chão com um graveto, fazendo cálculos de quanto tinha em dinheiro. Agora estava morto.
Não teve masca de fumo ou outras beberagens que dessem jeito. Ainda tentaram levar em lombo de um burro pra Santa Casa de Misericórdia, mas o veneno foi mais rápido. Morreu babando e com a língua de fora. Pedro, filho de Olinto, o ainda menino, ficou olhando tudo aquilo, mas agora não podia ter medo. Horas depois estava brincando com a cobra morta pelos cassacos. Aquela morte de Silício foi uma comoção entre aqueles homens. O corpo foi enterrado ali mesmo.
Nos seus pertences foram encontradas duas mudas de roupas, uma navalha, um pão de sabão, uma caderneta com anotações dos dias trabalhados e uma quantia em dinheiro. O encarregado saiu perguntando sobre quem sabia de algum parente dele em Parnaíba. Era de Piracuruca. O dinheiro recolhido entre suas coisas foi levado pra ser guardado no escritório e depois levado pra sua terra. Entre os homens agora voltando à calma e ao serviço, ficou silenciosa aquela pergunta nos olhos de, quando aquilo, aquela obra iria acabar.
*Antonio de Pádua Marques Silva, jornalista, contista, cronista e romancista, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras.
Ele se denominava na maioria das vezes de “Erivaldo”. Mas não se sabe seu nome ao certo, porque às vezes se dizia ser Francisco, João, Antônio ou qualquer outro nome que lhe vinha na cabeça.
Sua aparência era excêntrica. Alto, magro, branco, cabelos ora nos ombros e despenteados, avermelhados, pedaço loiro e outros pretos. Isso quando não raspava a cabeça nas laterais deixando no meio um tufo de cabelo que seguia da testa a nunca.
Estava sempre pedindo um trocadinho. Não gostava de pão nem frutas. Ou dinheiro ou café. Nada mais lhe agradava.
Tinha momentos de pessoa normal e inteligente. Quando percebia que seus pedidos estavam amiúdes oferecia-se para trabalhar. Seus serviços eram até de qualidade quando ele estava disposto. Limpava bem um terreno, fazia mandados e compra certinho. Jogava o lixo fora. Capinava as calçadas. Mas o difícil mesmo era ele querer trabalhar e encontrar quem lhe desse serviço. Sua aparência não oferecia credibilidade. Usava tatuagem, sempre armado com um facão afiado e todos comentavam seus proezas.
Um dia pediu a bicicleta emprestada do vigia e nunca devolveu. Sacou da parede o porta carta da casa de D. Clementina com carta e tudo para vender adiante. Até o número da residência do Dr. Ormeu ele subtraiu. E teve a coragem de dizer ao dono que encontrou no chão e veio devolver a custa de umas moedinhas.
Franzé não engolia as peripécias do “doidinho”, ameaçou várias vezes entregá-lo a polícia. Mas não tinha como provar que fosse o autor desses atos condenáveis. Ele além de doido era sabido. Fazia tudo com perfeição, não deixava rasto.
Um dia resolveu atuar em outra região. Nas redondezas onde morava já estava muito conhecido. Passando no centro da cidade perguntou a dona de um salão de beleza se ela não queria limpar a calçada. Ele estava com fome e precisando de uns trocados. E ganhou o serviço, começou fazer o trabalho. Nesse dia estava disposto. Uma cliente ao observá-lo, reconheceu o traste e passou rapidamente sua ficha para a dona do salão. Ele ao perceber que estava sendo reconhecido, ao ver a D. Manoela se aproximar cuidou logo de explicar antes de ouvi-la.
– Graças a Deus, a senhora me deu esse trabalho. Acredita que é difícil conseguir uma tarefa? Eu tenho um irmão gêmeo que é muito irresponsável. O povo me confunde muito com ele. Por isso nunca consigo uma ocupação.
O Sr. Juarez tinha um coração bom. Sabia de tudo, mas não gostava da implicância de Franzé. Defendia sempre o “Erivaldo”. Primeiro porque ninguém provara que foi ele que roubou a porta-carta de D.Clementina, nem o número do Dr. Ormeu. Ele jura que não vendeu a bicicleta do vigia. E seu Juarez era de boa fé. Ele era apenas desequilibrado. Não fazia mal a ninguém. Merecia uma oportunidade para provar que era honesto.
E um dia ele tocou o interfone da casa de Sr. Juarez sempre com a mesma conversa. Um trabalho. Já havia explorado demais o coração desse homem que lhe dava roupas, comida, café e “dinheiro”. O dono da casa mandou que ele capinasse o quintal e jogasse o lixo fora que ele lhe daria uma boa grana. E ele começou o serviço.
João o filho de Sr.Juarez, não gostou da atitude do pai. E disse:
– Pai, não ponha esse homem dentro de sua casa. Ele parece mais sabido do que doido. Tem uma péssima aparência. Todo mundo fala mal dele.
-Que nada, filho. Ele é apenas doidinho. Precisa de alguém que acredite nele. Veja como ele trabalha rápido. Tudo bem feitinho
Chegou a hora de João viajar. Ele morava em outra cidade estava apenas visitando seu pai. Abriu a porta- mala do carro e começou trazer as bagagens. Muito solícito o “doidinho” resolveu ajudá-lo. Levou o resto da bagagem, fechou a porta-mala e ficou aguardando uma gorjeta.
Sr. Juarez, não perdeu a oportunidade de passar na cara do filho. Viu, como tinha razão? Ele é uma pessoa boa e prestável.
João gratificou “Erivaldo”, achou até que seu pai estava certo. Despediu-se de todos e seguiu viagem.
Enquanto isso seu pai conferia o serviço do quintal. Tudo perfeito, limpinho. E indagou:
– Rapaz, onde você pois o lixo?
-Está longe, como o senhor recomendou
-Muito bem, você fez o serviço bem feito além de rápido.
Pagou-lhe bem por essa tarefa. Ele mereceu. E o doidinho foi-se.
O telefone toca. Era João:
-Alô, pai.
-Oi filho, o que aconteceu?
-Aquele doidinho ainda está aí?
-Não, acabou de sair. Por que?
-Porque precisei abrir a porta-mala de meu carro e sabe o que encontrei dentro?
-Todo o lixo que ele tirou de seu quintal. Quando eu pegá-lo….
E agora Sr. Juarez? O que o senhor diz? Ele é doido? Safado ou sabido?
DO LIVRO “ASSIM É A VIDA” 2006
MARIA DILMA PONTE DE BRITO
CADEIRA 28 APAL
PATRONO LÍVIO LOPES CASTELO BRANCO
1ºOCUPANTE HUMBERTO TELES MACHADO DE SOUSA