O Judas da Guarita.

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*Pádua Marques. 

Olegário estava colocando o nome do prefeito Ademar Neves num pedaço de saco de estopa pra depois, daqui a pouco dar os últimos ajustes no boneco do Judas que estava guardado nos fundos da casa. Agora faltava vestir com um paletó velho, conseguido pela mãe Rosa na casa de doutor Mirócles. Era desse jeito todos os anos desde quando se meteu a fazer aquela festa na Guarita, em meio daquele deserto de areia e com casas de barro cobertas de palha de carnaúba.

Sua mãe Rosa todo ano saía uns dois meses antes, ainda em janeiro, procurando entre as famílias ricas de Parnaíba alguém que desse uma roupa velha, fora de uso, uma camisa, calça, paletó, sapato, gravata, pra que seu filho Olegário vestisse o Judas pra queimar no sábado de Aleluia, passada a Semana Santa.

Era coisa de vir gente de tudo quanto era canto pra ver e se divertir. Na morte do Judas tinha refresco de maracujá, de limão, abacaxi, bolo de tora, bolo de milho, broa, chá de burro, café, cocada, macaxeira e milho cozidos, canjica, pamonha, tudo em quanto.

Vinha gente do Macacal, dos Campos, Tucuns, Curre, Tabuleiro, do Alto do Cemitério e até de dentro da rua, os filhos de gente rica. Vinha essa gente assistir a queima do Judas e que todo ano levava o nome de alguém detestado pelo povo, um intrigado, um político da Parnaíba. Aquela era uma festa pra se esperar pelo próximo ano.

E feita com apuro. Olegário fazia tudo sozinho. Muitas das vezes costurando e enchendo o boneco a noite inteira. Enchia de serragem, maravalha ou mulambo. Tudo servia. E naquele ano de 1933, Olegário estava era zangado com o prefeito Ademar Neves!

Olegário tinha pouco mais de vinte e quatro anos. Filho do carroceiro vindo do Sobradinho, Manuel, o Mano, com dona Rosa, que sofria dos nervos a ponto de só viver enfurnada e com a cabeça enrolada de pano, tinha ainda as irmãs Antonia e Maria José. De vez em quando Rosa em dias de crises, quando só faltava correr e acordar a Guarita toda, ia bater na Santa Casa atrás de algum alívio pra aquele sofrimento sem fim. Mas nesses tempos o filho era de viver entretido com as brincadeiras.

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Quando não era com a brincadeira de boi em junho, era com o diabo de Judas na Semana Santa! Uma vez ou outra aparecia algum colega e mais outro pra ajudar. Aí se formava aquela comandita toda da Guarita, gente ali de perto do Rio Grandense e que era afamada na Parnaíba inteira. Todo ano corria a notícia de que Olegário do Mano ia botar o Judas e a inquietação era saber quem seria o homenageado.

O menino que agora era homem e dono de dois jumentos e oito ancoretas, nunca foi de querer saber nada com escola. Do pai ouvia que escola era coisa de filho de rico, de seu Roland Jacob, Franklin Veras pra cima. E que seus filhos estando de bucho cheio e tendo uma rede pra dormir não carecia de muita ciência, coisa muito além não.

Olegário, menino, foi levado pela mãe Rosa e pela madrinha Cecília pra se matricular no Miranda Osório, mas refugou logo a tentativa de aprender a ler e escrever. Rosa agora botou numa escola do bairro, ali perto, mas ele foi com as irmãs por pouco tempo. Terminada a aula, era de sair correndo na frente delas, gritando, dizendo que estava com dor de barriga ou com febre e que não voltava mais.

No outro dia a mãe ia bater na porta de doutor Cândido, na Santa Casa, procurando saber do que se tratava. O doutor examinava aqui e ali e não encontrava nada de doença e longe dele, cochichando, dizia pra Rosa que o menino estava com manha, preguiça. E se continuasse daquele jeito era pra mais na frente ir pra Marinha ou acabar indo pra o Acre, onde tinha só índio que comia gente!

E a coisa acabava ficando por aquilo mesmo. E assim cresceu Olegário até encontrar seus jumentos e as suas ancoretas. Olegário fazia tempos havia se metido a botar água nas casas. Fez o pai fazer negócio com dois jumentos e umas ancoretas, oito ao todo, e ia pegar água na lagoa do Bebedouro pra vender nas casas da gente que tinha dinheiro, na linha ferro, mais pra baixo, nos rumos do Alto do Cemitério e que agora corria o risco de acabar seu serviço porque Ademar Neves estava calçando tudo quanto era rua, enquanto a Guarita ficava na pobreza.

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Mas quem seria o Judas daquele ano de 1933? Pouca gente adivinhava. E foi essa dúvida, essa inquietação que até o chefe de polícia de Parnaíba ficou preocupado. Mandou uns informantes ficarem nas proximidades da Guarita dia e noite, ouvindo raparigas, bêbados, vagabundos, enfim, assuntando aqui e ali com os vizinhos de Olegário do Mano. Mas era o prefeito Ademar Neves, chamado por Olegário de Camaleão Velho, o escolhido pra ser queimado no Sábado de Aleluia.

Naquele ano estava o inverno bom de água. As obras da estrada de ferro levavam muita gente a se mudar da Guarita, dos Tucuns, Curre e do Bebedouro pra beira da linha no Macacal. O incômodo lá eram as muriçocas! Muita gente dizia de boca cheia que a Guarita tinha os dias contados, que era lugar onde nem pra morrer haveria de prestar porque era coberta de areia e lá nunca teria nada! No dia da queima do Judas, no Sábado de Aleluia, amanheceu pros lados do Catanduvas com umas nuvens escuras. Olegário mal meteu a cara na porta foi ficando preocupado.

E lá pelo meio da tarde começou a chover. Todo o movimento esperado pra aquela festa foi pra dentro de casa. E foi chuva pra mais até de noite. Chuva de ninguém se atrever a meter a cara na porta. Chuva regada a relâmpagos e trovões. Coisa de fazer cachorro e menino se mijando de medo.

De uma hora pra outra a Guarita ficou um lamaçal só. E lá no largo, naquele terror de chuva, perto do Rio Grandense, Olegário do Mano junto com dois colegas tentando subir aquele boneco todo vestido de terno de linho, gravata marrom escuro, de sapatos lustrados, com o nome e a cara de Ademar Neves. O Judas foi ficando pesado de tanto levar água e eles não conseguiram que subisse. O jeito foi deixar o prefeito largado no chão.

*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras. Romancista, cronista e contista. 

POEMITOS DA PARNAÍBA

POEMITOS DA PARNAÍBA

Texto: Elmar Carvalho

Charges: Gervásio Castro

XIGAU

9.  Xigau

Assim como há

o espírito de porco

o espírito de gato há.

Xigaaaau… Xigaaaaaau…

Não articulava palavras,

apenas miados e miados

e a semiótica linguagem

de seus gestos de gato.

JIBÓIA

  1. Jibóia

 

Trazia a lembrança viva

de um passado morto e sepulto

dos Bailes Azuis e do

burburinho dos porcos d’água

e das meretrizes do cais.

Reinava na boite Rio-Chic

e desfilava pelo grande salão

cheio de espelhos e de sonhos

e de risadas esparsas

como num reino encantado.

A imagem de Jibóia morta

reproduzia-se pelos quatro

cantos do salão através das

pupilas perplexas dos espelhos.

(As velas do velório

lágrimas de cera choravam,

enquanto as mulheres, entre soluços,

rezavam contritas.)

HOSANA

  1. Hosana

 

Hosana nas alturas!

Hosana nas alturas

de sua vida sofrida

de pobre e alienada.

Interventora dos gabinetes

(cediam-lhe os pequenos tronos

de burocratas para rirem

o riso fácil e gratuito).

Cobradora de impostos e taxas

(davam-lhe ínfima moeda em

troca do riso rasgado).

Andava sempre com sua

roupa branca de marinheiro –

primeira e única almirante:

alma mirante

alma errante

alma navegante.

Sempre de

branco como as nuvens

que alvejavam em sua

cabeça de nefelibata.

BOA IDÉIA

  1. Boa Idéia

 

Um dia

ou melhor uma noite

Boa Idéia teve a idéia

de construir um telescópio

para sonhar/sondar aqueles pontinhos

cheios de pontinhas chamados estrelas.

Galileu Galilei da Parnaíba

construiu sua luneta

desvendou estrelas e planetas e cometas

e perscrutou os umbrais do infinito.

Autodidata da astronomia

com seu telescópio passeava

pelos “mares” da lua

dizendo coisa com coisa

que ninguém sabia.

Brincava de bambolê

com os anéis de Saturno.

Jogou bola de gude

com as luas de Júpiter.

Morfeu o levou para ser

centurião de galáxias. Mas

voltará não num rabo de foguete

mas na caudabundante flamejante –

mente reluzente do cometa de Halley.

RODRIGÃO 

  1.         Rodrigão

 

Que dizer do Rodrigão?

Que ele era um novo Atlas

a sustentar em suas costas

a esfera azul do sonho?

Não. Era um atlas de carne e osso

porque sua cara vista de perfil

era um mapa da América do Sul.

MARIA DAS CABRAS

  1. Maria das Cabras

 

Passava com seu passo leve

– quase voo de pássaro –

com a suave elegância

de uma cabra montês.

Rápida cortava as

avenidas e as praças

até que a molecada gritava:

– Maria das Cabras!…

Maria subia a saia:

– Taqui o chifre da cabra!…

Os moleques com as cabeças

cheias de idéias e fantasias

em suas alcovas ou banheiros

se escondiam: Maria das Cabras

surgia como uma fada encantada

entre véus diáfanos que se

es~~~~~gar~~~~~ça~~~~~~vam.

MARECHAL

  1. Marechal

 

Maluco, se dizia alta

autoridade do planalto.

Ficava fulo da vida quando

chamado de soldado ou de

Madame de Chaval.

Não andava: marchava

de farda e botas.

Davam-lhe plaquetas e selos

e pequenas chapas de metal:

eram as condecorações e os

distintivos com os quais desfilava

entre continências de

risos e zombarias.

JOÃO ORLANDO

  1.         João Orlando

 

Surdo, surdo como um surdo,

aprendeu com Bilac a ouvir estrelas.

E as ouvia nas lindas noites estreladas

de Parnaíba.

Em sua surdez de pau

ouvia o bater dos corações das pedras.

Ouvia o bang-bang dos colts

em suas leituras de faroeste.

Com sua morte silente

aprendeu a ouvir o silêncio

absoluto da morte.

PACAMÃO

  1. Pacamão

 

– Eu sou um monumento

anatômico e biotônico

onde a lenda se mistura com a realidade;

onde o homem se confunde com o mito.

E neste instante, sinto-me

forte como um elefante!

– Cadê a tromba? – perguntou um gaiato.

– Está aqui – retrucou Paca/mão na braguilha.

Pacamão: pacamônicos folclores

de ditos repetidos pela boca

do povo – arma de repetição

deflagrando gargalhadas.

EXPEDITO MACIEL

  1. Expedito Maciel

 

Enchia galões de gasolina

até a borda de cerveja

para beber e banhar.

Comprava defuntos frescos

para fazer o enterro.

O caixão seguia de carroça,

enquanto a banda tocava

por entre goles de aguardente.

Acendia charutos cubanos

com cédulas de cinco mil réis.

Dirigia carro importado dos EUA

vestido com roupa de estopa

de saco de açúcar.

Expedito Maciel,

Howard Hughes da Parnaíba,

milionário e excêntrico,

perdulário e esquizofrênico,

filho pródigo de si mesmo.

LUSE

  1. Luse

 

Sua saia rodada

sua saia rodando

era uma festa de

cores e folhas e flores

nas festas de que gostava.

Das pontas estelares de seus dedos

saltavam saltitantes valsas

pelos tec-tec teclados do piano.

Hoje ela estendeu um arame

nas pontas da lua nova,

colocou uma estrela e toc-toc

toca berimbau.

MÁRIO REIS

  1.  Mário Reis

 

Vulgo Mário Bola, tinha

a graça de um tatu bola.

Orfeu de novos carnavais

carregava o encantamento

dos sopros (marítimos) que

transformava em música em

sua gaita – caixa de mágico som.

Entre a música e a fofoca

uma piada de recheio.