Os três degraus.

 

ostres1

 

*Pádua Marques. 

Quando a canoa tocou o bico da proa no barranco do porto Salgado naquele meio de dia, 16 de setembro de 1939, os três rapazinhos ainda impressionados pelo movimento dos armazéns e lojas, mal perceberam mais longe a torre da igreja de Nossa Senhora da Graça e as outras casas comerciais, embora naquela hora fosse hora de almoço. José Justino, Moisés e Aurélio estavam chegando em Parnaíba, vindos do Brejo dos Anapurus, no Maranhão.

Tinham os dois primeiros, dezessete anos e o outro, dezesseis mal completados em abril. José de Ribamar Justino vinha atrás de um emprego no comércio, no Moraes, em algum dos armazéns do porto e tinha fé que seria mais fácil porque sabia assinar o nome e fazer alguma conta de cabeça. Mas vinha triste. Sua mãe havia morrido pouco mais de dois anos atrás mordida por uma cobra quando catava babaçu numa porção de terras abandonadas e ele ficou sozinho no mundo. Dos três era o único que tinha algum sinal de conhecer alguém naquela cidade.

E essa pessoa era sia Vicença, conhecida de sua finada mãe nos Anapurus. Vicença morava nos Tucuns, perto da lagoa do Bebedouro numa casa miúda, pintada de branco, coberta de palha, de dois quartos, chão de tijolos e uma janela dando pra rua. Tinha uma filha, cega de um olho, moça velha de uns trinta e poucos anos, muito feia, que pouco falava. A protetora de José Ribamar Justino era viúva de um barbeiro, Pedro Teodoro, que havia morrido enfraquecido, tuberculoso e no meio da rua em Parnaíba há dois anos.

ostres2

 

Uma coisa horrível de se lembrar. Caiu soltando sangue pela boca em frente à loja de seu Antonio Tomás, perto do Mercado.   E foi sia Vicença quem veio de casa naquele dia, naquele terror de sol, buscar o rapaz e seus companheiros no cais do porto Salgado e lhes dar acomodação.

Vicença se admirou do tamanho que estava o filho da finada comadre Domingas e tratou logo de procurar ver seus companheiros de viagem. Eram os dois, Moisés e Aurélio muito novos e acanhados. Mas José Ribamar Justino foi quebrando a vergonha dos companheiros dizendo que eles agora estavam na Parnaíba e tinham que criar alma nova! A viúva foi logo procurando saber o nome dos meninos, a idade, se tinham muita coisa na bagagem, pois a viagem até os Tucuns seria longa.

E assim foram os quatro entrando de Parnaíba adentro e olhando aquele movimento no início da tarde. No outro dia ela iria atrás de alguma colocação em algum armazém ou casa de gente rica dando sinal de que eram os três rapazinhos pessoas de sua confiança e quase seus filhos. Pelo caminho ia apontando esse ou aquele comércio, loja, barbearia, o cinema, Éden, açougue, oficina de sapateiro. Um homem dando de comer pra seu animal de carroça.

brinco3

Aqui uma mulher estendia na porta de casa um pano e em cima desse pano, camarão pra secar. Mais ali na frente um homem consertava uma rede de pesca e mais adiante umas meninas jogavam pedrinhas no chão de uma calçada. No largo da igreja de Nossa Senhora da Graça e tendo a igreja do Rosário, a dos pretos do outro lado, se benzeu e fez uma prece batendo os beiços.

Pedia por eles, aqueles três viventes em início de vida, principalmente José Justino, filho de sua conhecida. Mas também pelos outros dois, Moisés e Aurélio. Eles caminhavam em fila e cada um trazendo a pouca bagagem. Duas mudas de roupas, camisas e calças de botão, cuecas, espelho, um pão de sabonete e uma toalha de pano, copo de alumínio pra beber água, um pente de chifre, uma rede e um lençol ordinários. Era tudo o que tinham e o que conseguiram juntar com a ajuda de parentes pra aquela viagem.

Mas enfim chegaram na casa dos Tucuns e a moça feia, de nome Maria da Luz, veio abrir a porta. Sia Vicença não se acanhou e tratou de oferecer todas as acomodações da casa pequena aos três rapazinhos. Ficariam alojados no quarto da frente. Era pequeno, mas arejado e de frente pra rua. Correu até a cozinha a colocar uma chaleira no fogo pra fazer um café pra que logo em seguida procurasse alguma coisa pra os agora cinco dentro de casa comessem.

A moça velha, Maria da Luz, pouco deu sentido aos três rapazinhos e de pouca fala até mesmo com a mãe, foi ajudando aqui e ali com alguma tarefa. Mas no outro dia Vicença saiu com os três pra Parnaíba procurar colocação de serviço. A igreja de São Sebastião, nos Campos, estava em obras. Era grande o movimento de pedreiros, serventes, carpinteiros, mestres. Foi lá e pediu que queria falar com o encarregado. O homem veio e pediu que esperasse um instante. Não demorou muito e veio.

A viúva foi logo fazendo a propaganda de Moisés. Disse quem era ele e tudo o mais, menino de dezessete anos e bem fornido, moreno, de cabelo liso, não bebia, não fumava, ainda não tinha cegueira por rapariga e estava doido pra trabalhar! Quanto era o dia de serviço? Tudo acertado. Moisés ficou ali mesmo já traçando massa e carregando tijolos. Saíram os três à procura de outro serviço, dessa vez pra Aureliano, o mais novo. E não demorou muito, passaram em frente ao Mercado Central e viram umas bancas de frutas.

Vicença reconheceu o dono, seu Corinto, irmão de um conhecido freguês de seu finado marido, de nome Quincas Magalhães, dono de uma loja de frutas e doces. Puxou conversa, comprou umas bananas e ofereceu o segundo rapaz pra emprego. Deu certo de novo. O serviço era ficar gritando o preço das mangas, laranjas, bananas, sapotis, rapadura, mel de abelha e tudo o mais. Não podia ser acanhado! Com o tempo era bom ir aprendendo a fazer conta! Freguês chegasse e era pra encostar e ir oferecendo tudo e sendo gentil. Aparecia muita gente rica! Pagamento no final do dia. Nada mal pra quem nunca havia pegado em um vintém!

Era outro dia. Agora era o protegido e filho de comadre Domingas, que uma cobra matou com seu veneno naquela mata de babaçu nos Anapurus. Saíram pela manhã no rumo do centro de Parnaíba. José de Ribamar Justino e sia Vicença estavam passando agora pela Pharmacia do Povo, de doutor Raul Bacellar, quase na beira do rio. O doutor era de Brejo, conhecia muita gente e gente que tinha dinheiro. Talvez fosse mais fácil encontrar um serviço ali mesmo, entregando remédio, limpando o chão, os vidros, dando recado, varrendo a calçada, tudo.

Parnaiba antiga

Mas a moça do balcão, depois de perguntar do que se tratava, disse que o dono não estava naquele momento. Voltassem depois! Vicença não era de perder tempo e de ter medo de nada. Ficou perambulando com José Ribamar Justino mais um pouco e viu gente indo no rumo do Moraes, lá pra os lados do rio, na Coroa. Iam pra lá era agora! Uma fila de gente, uns quinze rapazes e até homens feitos procurando colocação. Não desanimou. Justino ali perto, mordendo os beiços e procurando criar coragem pra qualquer coisa. Sabia fazer um pouco de conta. Havera de ajudar.

 

Na sua vez Vicença foi chamada por um homem de barba por fazer que estava sentado atrás de uma mesa e sempre se levantando. Meio alto, pele queimada, poucos dentes na boca, falando alto e às vezes até gritando com algum companheiro lá pra dentro. Mas atendeu a viúva e seu protegido com certa cerimônia. Mandou sentar e tudo. Ela não encompridou conversa. Aquele era José Ribamar Justino, vindo de Brejo, terra de doutor Raul Bacellar! Conhece a Pharmacia do Povo? Conhece doutor Raul Bacellar?

E o rosário da vida de Justino foi sendo cantado sem tempo de sia Vicença tomar fôlego. Disse que era um rapaz de boa família, trabalhador pra toda obra e até sabia fazer conta de somar e dividir, multiplicar e diminuir. Sempre teve vontade de trabalhar no Moraes! Não bebia, não fumava, nem passava perto de cabaré. Justino, aquele rapaz ali na frente, era de extrema confiança! Nem se preocupasse. Era gente de dentro de sua casa! Falou de Pedro Teodoro, o barbeiro conhecido em toda a Parnaíba. Sia Vicença ia fazendo terreno.

Fazendo terreno e elogios pra ir ganhando corpo o pedido de emprego pra o filho de sua comadre. Firma boa essa do Moraes, muito movimento! Tinha que ter astúcia pra dar o bote na hora certa, feito cobra dentro de buraco. Ouvia dizer que o Moraes tinha negócios até no Rio de Janeiro, tinha navio levando óleo pra o estrangeiro, muita gente importante trabalhando. O encarregado pediu que deixasse o rapaz falar um pouco dele mesmo.

Sia Vicença ia acompanhando e até de vez em quando se intrometendo. No fim deu certo. José Ribamar Justino, que há pouco tempo havia chegado de Brejo dos Anapurus com Moisés e Aureliano pra mudar de vida na Parnaíba, cada um com duas mudas de roupas dentro de uma mala de madeira, um pente de chifre e um pedaço de sabão de coco pra tomar banho, era a partir de amanhã o varredor de pátio da firma dos Moraes!

*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras, cronista, contista e romancista. 

 

 

DIÁRIO – 23/03/2020

15194093135a9058a1b6b91_1519409313_3x2_rt

DIÁRIO

Elmar Carvalho

23/03/2020

            Na quinta-feira, dia 20, movida talvez por certa inquietude provocada por nossa quarentena contra o temível coronavírus, ainda mais que eu e ela nos enquadramos nos grupos de risco dos idosos e dos hipertensos, a Fátima foi descartar alguns papéis e objetos de uma gaveta, quando encontrou dois textos, que não faz muitos dias estive recordando.

            Um se chama A Banca do Distinto, que foi uma espécie de presente enviado por um “amigo”, no Natal de 2005, quando eu, aos 49 anos de idade, passava uns dias de folga em Parnaíba. O autor vergasta os arrogantes e soberbos, e lhes roga uma série de pragas, metafóricas ou não, explícitas ou implícitas, de cunho algo jocoso. Na verdade, trata-se da letra de uma música de Billy Blanco, que foi maviosamente interpretada pela inesquecível Elis Regina.

Quem me conhece sabe muito bem que não sou e nem nunca fui arrogante e muito menos soberbo; ao contrário, sempre fui tido na conta de humilde, embora eu mesmo não costume me atribuir essa virtude, porquanto isso já corresponderia a perdê-la.

O outro texto, datado de Parnaíba, 01/01/2006, é a minha resposta ao “amigo”, de há muito já perdoado, remetente da catilinária praguejadora, que segue abaixo:

“Agradeço-o muito pelo texto “filosófico” que o senhor me enviou. Para mim, teve o significado de um Cartão de Natal” e de Ano Novo. É sabido que cada um só pode dar as dádivas que tem.

E agradeço mais ainda a Deus pelo fato de que nenhuma das sentenças do referido texto serem condizentes com a minha personalidade, pois sou um homem humilde e temente a Deus, e tenho procurado tratar bem o meu semelhante, principalmente os mais pobres e mais humildes, visto que Deus me poupou da necessidade de ter de bajular os considerados ricos e poderosos. Mesmo porque, sendo um assalariado e pai de família, conheço muito bem os percalços e “apertos” da vida.

Infelizmente, sou criticado, por pessoas que não me conhecem bem, muito mais pelas minhas qualidades do que pelos meus defeitos, porquanto sou criticado pelo fato de ter estudado, por ter me esforçado para passar em concursos públicos e em vestibulares, e por não precisar mendigar benesses indevidas.

Rogo a Deus para não temer o termo de meus dias, e agora peço para ser um bom adubo para os frutos e para as flores do Senhor, pois todos nós, um dia, iremos repousar no ventre amigo da mãe terra.

Que Deus nos ajude a nos tornarmos cada dia melhores, para que todo dia cresçamos espiritualmente, e para que, a cada momento, nos tornemos mais generosos e fraternos.

Que nos aproximemos cada vez mais do bom, do bem e do belo, na escada e na escalada infinita para o ALTÍSSIMO!

E que Deus nos abençoe, nos proteja e nos guarde em sua mão poderosa.

Por fim, desejo-lhe um Ano Novo repleto de realizações, saúde e felicidade.”

Tempos depois, ingênua e candidamente, o remetente me explicou que, andando pelas ruas de Parnaíba, encontrara aquele texto de A Banca do Distinto, e “só” se lembrara de mim. Engraçado, o município já tinha mais de cento e tantos mil habitantes, e logo eu, que sequer residia nele, fui o agraciado com a epigramática oferenda.

Não posso deixar de me sentir um privilegiado.