TRIBUTO A DOIS AMIGOS

 

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TRIBUTO A DOIS AMIGOS

Elmar Carvalho

Estive hoje no escritório de contabilidade de meu amigo Carlos Cardoso. Conheço-o desde a nossa adolescência. Quando o conheci, no início da década de 70, ele era vizinho de seu primo, o Otaviano, meu amigo e colega de turma no velho Colégio Estadual, quando fazíamos o terceiro ano do antigo ginásio. Moravam perto do Centro Operário de Campo Maior.

O Otaviano era nosso líder no futebol. Foi ele quem nos iniciou na prática do esporte de arremesso de copo, por outros chamado de libações etílicas. Passados tantos anos, lembro vagamente que foi numa noite, por ocasião dos festejos de Santo Antônio do Surubim, numa mercearia, salvo engano, da chamada rua da pista. Foram umas largas talagadas de Ron Montilla.

O Carlos engasgou-se com uma dose, e o Otaviano passou-lhe umas duras reprimendas. Mais adiante, já no centro da cidade, ri não sei por que motivo ou mesmo talvez sem motivo; ele aborreceu-se, naturalmente achando que aquilo era uma “mancada”, o que denotaria a ingestão de álcool. Pouco tempo depois, o Carlos, seus irmãos e seus pais foram embora para Fortaleza, e o perdi de vista por algumas décadas.

Quando vim assumir meu cargo de fiscal da extinta SUNAB, em agosto de 1982, voltei a encontrá-lo. Amigo fraterno, convidou-me para morar em sua república, na avenida Jockey Club, em Teresina. Não era uma república de estudantes, onde imperasse a bagunça e a baderna; ao contrário, ali havia ordem e organização, com divisão de responsabilidades administrativas, financeiras e de tarefas. Moravam com ele dois administradores postais da ECT, o Humberto Nadal, paranaense, e o Robério, cearense, hoje juiz do Trabalho. Depois o Carlos deixou a república, em virtude do casamento, e eu nela continuei por mais alguns anos, até perto de meu casamento em  meado de 1985.

Ingressei na maçonaria a convite do Carlos e de seu irmão sanguíneo, Zé Ataíde, que também conhecia há muitos anos. Posteriormente, nós três e mais um punhado de irmãos valorosos fundamos a Loja Hiram Abib nº 3069, filiada ao Grande Oriente do Brasil – PI, da qual o Carlos foi o primeiro venerável. Meses atrás o Carlos nos pregou um grande susto, quando, perto de um infarto, foi submetido a intervenção cirúrgica, e teve que receber três pontes de safena e uma mamária, em virtude de herança genética, segundo o histórico familiar.

O Otaviano não deixou por menos, e, ao telefone, passou-lhe outra dura repreensão, e disse-lhe que não admitia que, na qualidade de primo e amigo mais velho, o Carlos lhe tomasse a dianteira, e construísse três pontes de safena e uma mamária antes dele; aquilo não estava certo e era uma tremenda injustiça que o primo mais moço lhe fazia.

Nesse ponto, devo esclarecer que a alegada diferença de idade é de apenas um ano. Contudo, dias depois voltou a ligar, e disse que já estava reconciliado com ele, pois adquirira uma hipertensão arterial, e pelo menos nisso o Carlos não lhe levara a palma e nem os louros da vitória.

Claro, tudo isso era uma brincadeira do imperador Otaviano, e uma maneira peculiar, toda sua, de animar e alegrar o primo e amigo. O certo é que, benza-o Deus, o Carlos está muito bem, e a “indesejada das gentes”, no dizer do poeta Manuel Bandeira, terá que bater em outra porta.

31 de março de 2010

(*) Por coincidência, se é que existe coincidência e acaso, encontrei ontem (17/10/19), na loja J. Monte, o José Francisco Pinto, que procurava reencontrar há alguns meses, sem êxito. Conversamos sobre o Otaviano Furtado do Vale, nosso amigo comum. Quando fui republicar hoje a sequência de meu Diário Incontínuo, o texto da vez era este, em que evoco o saudoso amigo Otaviano e o seu primo Carlos Cardoso. Ao conversar agora com sua irmã Cristina do Vale e Silva, soube que ontem era o dia do seu aniversário, posto que ele nasceu em 17 de outubro de 1956, mesmo ano em que nasci. E no próximo mês de novembro, no dia 19, será o sexto ano de seu falecimento, uma vez que sua morte precoce aconteceu em 2013, no mesmo ano em que tive várias perdas, inclusive a de minha inesquecível mãe, Rosália Maria de Mélo Carvalho.

Segredos que se transformam em cinzas.

 

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 *Pádua Marques

Elias tomou primeiro a lamparina e foi direto ao canto da casa. Entre a parede dos fundos da igreja, dando pra o quintal, mandou Mata Pombo cavar um buraco de boa fundura pra depois ir buscar lá dentro, enrolada num pano velho, a pequena caixa de madeira escura com os documentos mais valiosos que seus olhos tiveram de ver e sua única mão já de um dia pegar.

Além de peças pequenas, objetos e sem importância, algumas cartas trocadas com políticos e com o imperador dom Pedro I, recibos de compras de escravos vindos da Bahia e do Maranhão e de mercadorias de seu senhor Simplício Dias da Silva com outros comerciantes.

Quando ainda estava bom do juízo e podendo falar, um dia de 1827, o coronel e governador da vila da Parnaíba chamou Elias e depois de reler todos os documentos ordenou que desse fim naqueles papéis. Simplício Dias deu a entender ao escravo de confiança que, se vistos por alguém de fora de casa depois que ele fechasse os olhos, em muito haveria de dar confusão e desgraça no meio de sua família e nos políticos que se tornaram seus inimigos. Que tocasse fogo nos papéis. E nos objetos, enterrasse em lugar que ninguém pudesse nunca encontrar.

E à medida que mostrava este ou aquele documento pra Elias, Simplício Dias da Silva ia dizendo do que se tratava. Este, uma carta ao imperador dom Pedro I em que ousava pedir ressarcimento por ter fornecido cento e cinquenta arrobas de algodão em fardos, dez arrobas de carne de charque e dez escravos tirados da propriedade da Barra do Longá pra os serviços das tropas brasileiras na Guerra da Cisplatina.

Noutro documento, de novembro de 1802, um recibo de compra de trinta escravos, trazidos da praça de Salvador, na Bahia. Carta ao visconde da Parnaíba, Manuel de Souza Martins, em que se sentia incomodado com os insultos recebidos por parte de gente do juiz de paz João Cândido de Deus e Silva, por não ter aceitado ser governador da província do Piauí. Mais um recibo de compra de terras na região do Pirangi e dentro da carta um curioso caroço de amendoim.

Logo em seguida mostrou pra o escravo e confidente aquela carta que seria o mais importante dos documentos e ao mesmo tempo aquele que lhe trouxe mais contrariedade na vila da Parnaíba e na província do Piauí. Carta em que dom Pedro numa caligrafia bem cuidada lhe agradece pelo apoio à causa da independência e oferece o cargo de governador.

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Simplício Dias lia e relia acentuando trechos da carta imperial de 25 de novembro de 1823 onde constava a consideração aos distintos merecimentos, patriotismo e adesão à sagrada causa do império e mais qualidades recomendáveis. O resto da conversa até Elias havia de lembrar de có e salteado no que deu.

Num papel já amarelado mais que todos os outros, datado de 1814, o pedido pra que o governador da capitania do Piauí, Baltazar de Sousa Botelho de Vasconcelos se empenhasse em transferir a capital pra vila da Parnaíba, mas receoso de que o povo e as câmaras fizessem oposição. Elias estava atento a tudo que dizia Simplício Dias da Silva e vez por outra dava sinal com a cabeça de que estava entendendo tudo. Outra carta em que manda ao chefe de milícia, uma apuração mais rigorosa sobre o assassinato de seu irmão Raimundo em 1812, inclusive recomendando caso fosse necessário, usar de pulso forte. Esse pulso forte significava violência.

Simplício Dias mandou que Elias providenciasse a destruição daqueles documentos e se necessário fosse com a ajuda de outras pessoas, não deixasse testemunhas. E essa outra pessoa apareceu. Mata Pombo, um negro sem dono, de uns vinte e cinco anos de idade, meio maluco e que vivia perambulando entre a rua Grande, o porto e o largo da igreja dos pretos. Este seria fácil de, terminado o serviço, dar fim nele. Mas os documentos continuavam a serem mostrados. Agora eram alguns sobre a posse por ele e os de sua família, da Ilha Grande de Santa Isabel.

Quando ia mostrando estes documentos, o coronel pouco falava. Este silêncio de vez em quando era de propósito. Alguns ele passava por cima. Elias pela condição de inferior, de servo, não ousaria perguntar e ele não tinha interesse em dar maiores explicações sobre certas passagens e decisões. Dentro da caixa ainda estavam, uma pequena imagem de madeira de Nossa Senhora do Carmo, cinco contas de vidro de um terço, provavelmente de sua mulher Isabel Tomásia, duas penas de periquito ou papagaio, um botão de camisa, um bico de pena de escrever.

Documentos datados de janeiro de 1824 em que o coronel Antonio José Henriques dava como recebidas, peças, petrechos e munições de guerra, tirados de Parnaíba por Fidié e as peças de prata e alfaias da igreja de Nossa Senhora da Graça. Simplício estava perdendo o gosto pela luta.

Estava presente em sua voz agora mais baixa e nos gestos. Elias via o senhor indo embora pra morte e procurava tirar da cabeça este lado ruim da realidade. Seus negócios iam dando sinal de queda e outros comerciantes estavam roendo as unhas e somente esperando a sua morte pra avançarem nas suas terras.

Elias fez trato com Mata Pombo pra que numa hora qualquer da noite viesse com ele fazer um serviço na casa do coronel Simplício Dias da Silva e pelo que iria ganhar uns tostões. O negro veio e entrou sem ser visto por um portão de madeira, do lado entre a igreja e a esquina e foi ao encontro do outro e os dois juntos pegaram a caixa e a lamparina.

Iriam testemunhar o sepultamento e a destruição de muitos documentos que o coronel ficaria devendo à história da Parnaíba. Com o buraco cavado nos fundos do quintal os objetos seriam enterrados. Era ordem de Simplício Dias. Mata Pombo depois fez o pelo sinal da cruz umas três vezes. Nem adivinhava que iria morrer.

Agora era a vez de queimar os documentos. Mata Pombo jogou um pouco de azeite em cima dos papéis e chegou a chama da lamparina na ponta de uma das cartas. Elias assoprou e assoprou até que tudo foi pegando fogo. Veio na direção dos dois escravos um cheiro forte de papel velho queimado. Lá de cima do andar do meio da casa de Simplício, uma pessoa pigarreou dando sinal de que alguém estava acordado. Decerto que não era dona Isabel Tomásia, mas o marido e mandante do serviço.

O fogo demorou a tomar conta de tudo. Foi preciso que os dois negros ficassem assoprando pra que finalmente dado um tempo, as labaredas baixas consumissem os documentos. Mas sobraram algumas pontas de papel e essas pontas foram se juntar à areia do quintal. Agora eram os poucos objetos sem importância que ganhavam destino.

A imagem da santa, que Mata Pombo quis ficar pra ele, mas Elias não permitiu. Depois as contas de terço, a pena de escrever, as duas penas da ave. Sem qualquer cuidado foram um a um sendo jogados dentro do buraco. Tudo terminado, Elias e Mata Pombo estavam cansados e suados pelo serviço.

Foram depois pra os lados do cais do Porto Salgado atrás de alguma venda onde pudessem beber alguma coisa. Eram altas horas, mas o propósito de Elias de não deixar testemunhas estava prestes a ser cumprido. Acharam mais lá embaixo, já dentro de umas casas no Cheira Mijo, uma venda aberta. Elias ficou atrás e deu dinheiro pra Mata Pombo comprar aguardente.

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Mandou o outro porque não poderia ser visto por qualquer um na rua e fora dos domínios de Simplício Dias numa hora daquelas e na companhia daquele que estava marcado pra morrer. De madrugada Elias voltou pra casa de Simplício Dias da Silva. E na ponta do pé foi entrando pelo mesmo portão dos fundos. No quintal, foi até o poço, tomou um banho demorado e depois foi até o quarto onde dormia, trocou a roupa suja de sangue por uma mais limpa.

Naquele sábado quando era baixo o movimento da rua Grande pra baixo no Porto Salgado, todo mundo ficou sabendo que um negro vadio, sem dono e apenas conhecido pelo nome Mata Pombo havia sido encontrado morto a facadas. Decerto que pelas características do crime, um golpe certeiro na garganta, foi briga entre ele e algum marinheiro disputando a rede de mulher da vida ou disputa de jogo de azar. Mesmo sem ter dormido muito e ainda cansado pelo serviço da noite passada, Elias estava aliviado. Tudo aquilo que lhe fora ordenado por Simplício Dias da Silva havia sido cumprido, queimado e enterrado.

*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras.