O sumiço das galinhas.

 

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*Pádua Marques.

Foi ficar sabendo que seu compadre e amigo de lutas políticas no Piauí, Simplício Dias da Silva, governador da vila da Parnaíba, estava muito doente, sem força nas pernas, tísico e até já com dificuldade de falar alguma coisa, que Benevides do Prado, negociante de Chaval, no Ceará, mandou selar um cavalo e sem piscar os olhos ordenou que Romeu, seu escravo de confiança, corresse no terreiro da fazenda e trouxesse na sua presença umas cabeças de galinhas. Era pra o coronel tomar uns caldos e quem sabe recuperar as forças.

A viagem de Romeu foi sofrida por aqueles matos secos do início de setembro e saindo de madrugada na direção da vila da Parnaíba. Em cima do cavalo levava umas dez cabeças de frangas de primeira pena, ainda não cobertas por galo, canelas limpas, de crista miúda. Aves de dar gosto até de vender num mercado. As melhores que pode tirar da imensa criação de Benevides do Prado no distante Chaval. No romper da manhã Romeu chegou ao largo da casa de morada de Simplício Dias da Silva e, com medo de causar perturbação, achou de esperar de longe.

Romeu, negro de seus quarenta anos, trazia no alforje uma carta de Benevides do Prado em que o cearense desejava ao coronel no Piauí pronto restabelecimento da saúde e falava da carga de galinhas pra o compadre se alimentar. Recomendava que as franguinhas servissem pra canjas nos finais de tarde e até que se assim desejasse, antes de dormir, pra não darem empanzinamento. Era presente seu e se assim desejasse mais, era só ordenar. E foi o escravo ficar esperando um tempo longo alguém sair da casa de Simplício Dias da Silva que fez com que tomasse uma decisão.

Tomou o rumo do porto Salgado lá embaixo e por lá foi visto com o cavalo e as franguinhas por uns marinheiros do navio Princesa de Belém. Viram as aves e acharam de perguntar ao negro de quem eram e se estavam à venda. Se vendesse as galinhas eram pra servirem de refeição a bordo ainda naquela manhã de quarta-feira! Romeu ficou coçando a cabeça por uns instantes e esfregando as mãos e metendo no alforje se lembrou da carta de Benevides do Prado. De baixo onde estava respondeu que a carga era presente de seu dono pra o coronel Simplício Dias da Silva.

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Os marinheiros não perderam tempo de dizer que do jeito que Simplício Dias estava, mais morto do que vivo, não iria sentir falta e nem ninguém iria dar conhecimento de que umas dez galinhas novas, vindas do terreiro de Benevides do Prado, em Chaval, iriam fazer falta. Que vendesse, pegasse aquele bom dinheiro e fizesse uso nas lojas e armazéns da Parnaíba. Seria dinheiro suficiente até pra que fosse gastar com mulheres e bebidas nos Tucuns ou na Coroa. Romeu alegou que havia uma carta do seu senhor pra o coronel dando ciência da carga e desejando pronto restabelecimento.

De novo os marinheiros acharam de meter na cabeça do negro Romeu que desse um fim na carta. Simplício nem iria fazer questão de saber. Ficaram jogando preços nas galinhas como se estivessem num leilão. A aposta já alcançava uma boa soma e sempre coberta por um marinheiro mais afoito. E naquela disputa foram indo, foram indo, foram indo e o negro fazendo bossa e criando e encompridando conversa por conta de sua condição e fidelidade. Vai que alguém reconhece e depois fica sabendo do que veio fazer na vila da Parnaíba? O sol já estava alto quando finalmente Romeu aceitou vender as dez franguinhas, presente de Benevides do Prado, do Chaval, pra Simplício Dias da Silva, na vila da Parnaíba.

Romeu aceitou uns dez tostões pelas dez franguinhas. O marinheiro desceu da embarcação e veio fechar o negócio. Uma a uma as dez moedas foram caindo na mão grosseira. O negro, que nunca havia pegado em dinheiro, estava satisfeito. E não é que tinha jeito pra negociante? Pegou as moedas e enfiou no bolso da calça. Ainda meio afobado e incentivado pelo comprador das galinhas, abriu o alforje, retirou a carta e dando mais uns passos rasgou e jogou os pedaços dentro do rio Igaraçu.

Depois, puxando o cavalo pelo cabresto tomou o rumo da ribanceira e se perdeu no meio de toda aquela gente do porto Salgado entre os armazéns, as lojas, as negras vendedoras de frutas e verduras e os negros carregadores de água pra beber e tomar banho, nas primeiras horas da manhã. Quando voltasse pra Chaval, daqui a mais um dia, se voltasse, iria dizer que Simplício Dias da Silva, dado o estado em que se encontrava, nem fizera mais questão de receber presentes. E sua mulher, dona Isabel Tomásia, que não sabia ler e nem escrever, apenas recomendou agradecimentos. Aqueles tostões ele não tinha!

*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras.

 

Visita ao Lar das Flores de Maria

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Visita ao Lar das Flores de Maria

Elmar Carvalho

Meses atrás, quando meu filho João Miguel veio de férias a Teresina, fez uma visita, sem o nosso conhecimento prévio, ao Lar das Flores de Maria, que abriga várias anciãs, oportunidade em que lhes levou donativos. Desde então fiquei com desejo de visitá-lo, mas, por fracos motivos, quase injustificáveis, fui adiando essa promessa que fiz a mim mesmo.

Contudo, nesta segunda-feira (23/09/19), de manhã, em companhia de Fátima, fui visitar esse abrigo de mulheres idosas, cujas idades variam de 70 a 108 anos. Curiosamente, a mais do que centenária goza de boa saúde, e se mantém ativa e lúcida. Entretanto, outras sofrem de doenças graves, que não irei nomear, inclusive o mal de Alzheimer.

Fomos acolhidos pela irmã Aline, que nos revelou ser parnaibana, terra a que somos ligados por laços afetivos e sentimentais, e onde moramos por muitos anos. As velhinhas estavam num espaçoso e arejado alpendre, como se estivessem numa espécie de mitigado banho de sol e recreio, em que faziam uma leve refeição matinal.

Após os cumprimentos de praxe, uma das senhoras perguntou o meu nome. Em seguida, indagou sobre a origem de meu sobrenome Carvalho, tendo eu lhe respondido que foi legado pelos meus antepassados barrenses, por parte de meu pai. Ela passou a falar das agradáveis recordações que tinha de Barras, quando em sua mocidade ali passara algumas de suas férias, a convite de uma amiga. Acrescentou que na época ali se realizavam muitas festas. Eu, então, lhe respondi que Barras dera ao Piauí grandes poetas e músicos, e que lá, décadas atrás, existira a banda musical de sopro e percussão mais afamada da região.

A Irmã Aline nos convidou a conhecer o interior da casa. Vimos várias de suas dependências, entre as quais a sala principal e alguns dormitórios. Acho relevante dizer que eram limpos, arejados, higiênicos e bem cuidados. Contígua ao edifício principal existe uma pequena e simpática capela, na qual são celebradas três missas semanais.

Perguntei se o Lar era vinculado à Arquidiocese, e se recebia ajuda da ASA – Ação Social Arquidiocesana, criada por Dom Avelar Brandão Vilela, tendo ela me respondido que não. Assim, depreendi que o abrigo depende do auxílio que as irmãs da ordem das Virgens Consagradas recebem.

Eu havia levado uma pequena oferta, que entreguei logo ao chegar. Considerando a importância do Lar das Flores de Maria para aquele grupo de mulheres idosas, prometi que passaria a enviar, mensalmente, uma pequena ajuda financeira, pelo que pedi o número da agência e da conta do abrigo.

Na esperança de que meus parcos e eventuais leitores queiram ajudar essa instituição de amor ao próximo, deixo aqui o número de suas duas contas: Caixa Econômica Federal – CC-00000350-6 / Agência 3829 / Operação 003 e Banco do Brasil – CC-24746-4 / Agência 4708-2. Caso necessário, eis o CNPJ: 16.702.199/0001-30. Seu endereço é rua Dr. Francisco Almeida, 995 – Ininga, nesta capital.

Como o poeta Carlos Drummond de Andrade, “Não amei bastante meu semelhante, / não catei o verme nem curei a sarna. / Só proferi algumas palavras, / melodiosas, tarde, ao voltar da festa.” Por isso mesmo, esbocei esse pequeno gesto, que não estou contando para me exaltar, mas apenas para induzir outros a fazerem mais e melhor.

Tendo sido eu, basicamente, a vida toda um literato, perguntei se algumas das irmãs e velhinhas gostavam de ler. Recebendo resposta afirmativa, resolvi “castigá-las”, lhes deixando dois exemplares de livros de minha autoria, que talvez venham a ser o embrião de uma pequena biblioteca.

Coronel Queixada, governador da Barra do Longá e herdeiro de Simplício Dias.

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*Pádua Marques

 

Simplício Dias da Silva havia tempo estava no leito esperando a morte. Mas suas roupas e alguns pertences já haviam ganhado a rua pela porta dos fundos e dados pra gente ordinária, mendigos, vagabundos, loucos de toda sorte e escravos sem senhor na vila de São João da Parnaíba. Queixada, um desses, acabou ficando com o uniforme e as dragonas douradas, o mesmo uniforme que o coronel em festas de gala anos antes ostentava durante as missas com a família, nas paradas da milícia ou quando recebia políticos, visitantes e cientistas estrangeiros.

Queixada agora andava pra cima e pra baixo com o uniforme do coronel Simplício Dias, que de certa forma conseguiu enganando Elias, depois deste ter mentido pra dona Isabel Tomásia. Queixada era um negro fosco, o cabelo pixaim de tão sujo era cor de cobre, de baixa estatura e muito feio. Tinha os caroços dos olhos amarelos e era chegado a uma aguardente e um cigarro barato. Se gabava pra todo mundo, desde a Coroa até os Tucuns, que era filho de uma escrava de dentro da casa do governador da vila da Parnaíba, quando o coronel ainda tinha alguma moeda na burra e os soldados de Fidié ainda não haviam saqueado as joias e as pratarias da igreja de Nossa Senhora da Graça.

O apelido de Queixada ele ganhou de gente na rua por ter os queixos largos e a cara quadrada. Dona Isabel Tomásia imaginando que o pedido de Elias era uma lembrança, deu o uniforme, mas não as medalhas e outras condecorações. E muito menos o punhal e a pistola. Vai que por qualquer descuido de Elias estas armas acabassem nas mãos de algum malfazejo, trocadas por miudezas e dando motivo pra confusão e até algum crime?! Do jeito que Simplício Dias estava não dava mais pra defender ninguém.

O certo é que o uniforme com as dragonas douradas acabaram nas mãos de Queixada. Como dona Isabel Tomásia não deu as medalhas, ele achou de colocar no presente valioso toda sorte de objetos. Botões dourados ganhos de uniformes de comandantes de navios, medalhas de santos, cacos de vidros e até chaves de algum armazém abandonado lá pros lados do antigo estaleiro. Era tudo o que achasse servia pra encher o peito. E assim ia cumprindo a sina de doido. E que por ter fama de doido recebeu o apelido de Miolo Mole. Mas não se caísse na besteira de falar esse apelido.

Corria atrás com pedra e paus ou o que achasse pela frente. Era o terror de meninos, mulheres da vida, outros vagabundos que passavam o dia inteiro caturando um serviço no porto Salgado. E foi assim que recebeu de um comandante de navio a patente de coronel, coronel Queixada, governador da Barra do Longá. Gostou tanto do posto que agora andava sempre com um cacete curto entre o cinto velho e a calça como se fosse uma espada. Ora, deu que virou! De manhã cedo, mal o movimento dos armazéns, lojas, repartições do governo e embarcações no porto davam início, lá estava o coronel Queixada fazendo inspeções. Era atracar um navio vindo o Maranhão e lá ia ele mandando abrir bagagem e mercadoria, se fazendo de autoridade. Os mais medrosos até que obedeciam. Obedeciam pra não criar confusão. Outros achavam graça, zombavam.

E pelo serviço ia ganhando um vintém aqui e outro ali. Queixada perdeu o juízo quando ainda novo um pedaço de madeira caiu em sua cabeça no estaleiro onde trabalhava no outro lado da Ilha Grande de Santa Isabel. Foi o bastante pra que tão logo se recuperou dos ferimentos fosse apelidado de Miolo Mole. Era de entrar na igreja do Rosário dos Pretos e de altar em altar, de olhos fechados e batendo os beiços ir fazendo o pelo sinal da cruz uma porção de vezes. Depois, sem ver nem pra quê, saía correndo desembestado pelo meio do largo e ganhava a rua entre a igreja da Graça e a rua Grande.

E os vendedores de frutas, negras vendedoras de coco, cocada, temperos pra panela, manga e caju vindos da Ilha de Santa Isabel, gente fazendo compras pras cozinhas de seus senhores, ficavam gritando, Coronel Queixada! Coronel Queixada! Viva o Coronel Queixada! Miolo Mole, fela da puta, filho de uma égua! Miolo Mole! Depois quando passava a doidice instantânea ele ia se proteger dos insultos e das pedradas na sombra dos armazéns. Dona Isabel Tomásia, dado o cuidado com o marido quase morto, pouco se interessava pelo que vinha da rua. Se sabia de algum alvoroço, brigas entre embarcadiços e mulheres da vida, entre os Tucuns e a Coroa, era de ficar calada.

Em casa o coronel Simplício Dias ia de mal a pior. Vinham os vizinhos, gente importante e até antigos desafetos ver de perto como estava o sofrimento lento daquele que dentro de mais alguns dias iria fechar pra sempre as capelas dos olhos. Vinham, ouviam da dona da casa como ele estava e saiam de cabeça baixa. Mas na rua e no agora pouco movimento da outrora vila rica da Parnaíba e nos lugares mais distantes, o que se sabia era que Simplício Dias da Silva já era morto e enterrado dentro da igreja. Havia até quem dissesse que havia morrido e jogado no mar ou estava enterrado entre os cajueiros no distante Testa Branca.

No porto Salgado as conversas entre os comandantes de navios vindos de Tutoia no Maranhão eram de quem iria ser a maior autoridade da vila da Parnaíba depois da morte de Simplício Dias da Silva. E nesse fulano disse isso ou disse aquilo as mercadorias iam se acumulando no porto, as lojas tendo prejuízos, as encomendas rareando. O coronel Queixada ia de porta em porta ouvindo, espalhando conversa e aumentando por sua conta. Um dia encontrou um negro da sua igualha e lá pelas tantas se danaram a brigar por causa do uniforme. Brigavam agora por causa da patente. Quintiliano, o outro negro sem ocupação, disse que Queixada era coronel porque sua mãe era curica da cozinha de Simplício Dias.

Se atracaram numa rua dos Tucuns e Quintiliano rasgou e arrancou a manga do uniforme do coronel Queixada. Botou força e as medalhas todas caíram e se espalharam na areia imunda do Cheira Mijo. Queixada deu de garra na espada de cacete e meteu na cabeça de Quintiliano. Foi sangue pra danar. As mulheres e os meninos gritando e os marujos dando vaias e até apostando ver quem haveria de ganhar aquela queda de corpo. Chamada a milícia, os dois foram presos. O chefe de milícia, Lucas Patriotino Ferreira, homem de dentro da casa de Simplício Dias, mandou dar logo de entrada uma dúzia de bolo de palmatória em cada um, tomou e ateou fogo no uniforme causador da briga.

Qual o motivo desta briga, negro? Negro não, coronel Queixada, governador da Barra do Longá! E quem te deu patente, negro? Onde já se viu negro coronel e ainda mais da Barra do Longá?! Foi comandante de navio do Maranhão quem me deu patente! E desde quando comandante de navio vindo de Tutoia do Maranhão dá patente na vila da Parnaíba? Negro, vê se te cala senão dou cobro de ti!

A dúzia de bolos foi mesmo que dar mingau de milho em boca de menino! Dentro da cela os dois negros ainda com as mãos em fogo se pegaram de novo. Sopapos, gritos, mordidas e tudo o mais. Ainda não havera de acabar aquela arrumação? O jeito foi levar pro tronco e dar uma dúzia de chibatadas em cada um, nu do jeito que veio ao mundo, enquanto todo mundo ficou dando gaitada.

*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana  de Letras.

As mãos de Elias.

 

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*Pádua Marques.

 

Simplício Dias da Silva estava, como se dizia entre o cais do porto e os confins dos Tucuns, com o pé na cova da igreja da Graça. A cada dia ficava pior, já não se levantava mais sozinho da cadeira preguiçosa que o negro Elias, mesmo manco e com apenas um braço, todas as manhãs colocava no andar do meio da casa de morada entre a rua Grande e a igreja, dando vistas pra o movimento do porto Salgado e o estaleiro, fazia tempos desativado.

A língua de Simplício Dias da Silva pesava dentro da boca desdentada e os olhos cinzentos e frios havia tempo, perdido o brilho de quando antes mandava executar qualquer serviço entre suas propriedades, dava ordens pra milícia ou ia pessoalmente ver a arrumação de tudo que estava sendo feito, até na cozinha. Agora mal reconhecia a mulher dona Isabel Tomásia, que não descansava um rasgo de tempo cuidando dele. Todos os dias as senhoras dos principais da Parnaíba vinham ver como o doente estava.

Vinham, rezavam em voz baixa e iam saindo na direção da antes faustosa sala cheia de móveis pesados e escuros. Dona Isabel Tomásia ficava de cabeça baixa e a voz mais ainda, mandava servir um café, um refresco de caju ou de outra fruta, vinda dos Morros. Ela sabia que o marido não haveria de demorar mais muito tempo em cima da terra. Depois as visitas iam embora. Elias estava sempre por perto, mas mantinha a reserva da distância quando começavam as rezas. De onde estava acompanhando ia se benzendo e sempre de olhos fitos no coronel.

Na rua e lá embaixo o movimento no porto Salgado e de tudo que dependia dele era o mesmo de todos os dias. Negros bem cedo carregando barris com água pra encher quartinhas, potes e tanques pra banho de seus senhores, lavadeiras descendo o barranco até os Tucuns em busca de um lugar bom pra lavagem de roupas, carroças de aluguel já ocupadas com gente importante ou de dinheiro na burra que não queria caminhar pelas ruas esburacadas ou cheias de pedras irregulares.

Lá adiante alguém era de se cruzar e se afastar tapando o nariz com quatro negros nus da cintura pra cima transportando um barril cheio de fezes e urina tirado da casa de gente importante, algum doutor, juiz, capitão, comerciante de posses. Um dos negros trazia no pescoço um sinete pra advertir sobre como se afastar daquela carga incômoda e repulsiva. Iriam despejar lá embaixo, depois das lavadeiras, após a curva e já dentro dos Tucuns, que por isso passou a ser chamado de Cheira Mijo.

As conversas na vila da Parnaíba naquele meio de setembro de 1829 entre quem descia ou subia nas embarcações vindas do Maranhão, entre as lavadeiras, os embarcadiços, donos de oficinas, comerciantes e seus fregueses, era de que o comandante e governador Simplício Dias da Silva, que era tido e havido como um dos mais ricos da província do Piauí, não haveria de durar até o final do mês. Pouco se sabia sobre a doença dele e aquilo era ainda mais motivo pra que gente de toda classe lhe desejasse a morte lenta e sofrida, pra pagar em cima da terra todo o mal que havia feito. Mas havia também gente, aqueles que se compadeciam.

Elias estava sempre onde deveria por obrigação e ofício estar. Era agora o de um tudo na casa de morada. Não reclamava, não rogava praga nem mesmo quando sozinho ou entre o pessoal da cozinha, gente da sua condição. Era ele Elias quem tirava o velho Simplício Dias da Silva da rede tão logo este abria os olhos e mostrava pra ele ou dona Isabel jeito de querer ficar na sala, perto da janela de treliça e pegando a fresca vinda do rumo do Testa Branca. Depois levava mesmo sem um braço e manco da perna, pra rede, dava água de beber, banho, trocava as roupas de baixo e de cima, perguntava que dia era aquele ou quem era esta ou aquela criada. Tentava em vão lhe refrescar a memória.

Elias dava comida na boca, limpava as migalhas de arroz ou uma gota do caldo de carne de boi, de peixe ou de uma franguinha de primeira pena, mandada dos Morros decretadinho pra Simplício Dias tomar uma sopa. Limpava o penico ao lado antes que chegassem visitas. Elias estava ali feito uma bengala. Fazia tudo. Tentava a todo custo dar ânimo a um homem que estava querendo morrer. De vez em quando o criado saía e ia até o fundo da casa ou do quintal. De longe era visto esfregando os olhos. Chorava e chorava muito. Olhava pra única mão encardida e calosa, pronta pra servir e fazer qualquer coisa.

*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras.

 

 

 

 

 

A revolta dos tamancos.

 

*Pádua Marques

 

Ninguém na vila de São João da Parnaíba esperava por aquilo naquele dia 10 de setembro de 1829. Caboclos, negros desocupados, negras vendedoras de frutas e verduras, embarcadiços, viajantes, donos de pequenos pontos de comércio, enfim toda sorte de gente ficou por toda a manhã em frente à casa do quase morto coronel Simplício Dias da Silva, entre o largo da igreja da Graça e a rua Grande, batendo um tamanco no outro, gritando nome feio e dando vaias.

Gente vinda de Ilha Grande de Santa Isabel, Araioses, Tutoia, Tucuns, Testa Branca e dos Campos, da Parnaíba toda, cobrando justiça pela prisão e açoite na véspera, de duas negras vendedoras de muricis e goiabas que estavam falando alto e arrastando os tamancos, justo na calçada e embaixo da janela do quarto, onde estava acamado e com os dias contados, o dono da Parnaíba. Aquele reco pra cá e reco pra lá nas pedras não deixava Simplício Dias pregar o olho.

A notícia de que as duas negras estavam no calabouço da casa e levando de meia em meia hora dúzias e mais dúzias de bolo de palmatória fez vir gente de tudo quanto foi lugar. Diante da confusão e do clamor da multidão os milicianos foram chamados e cada um em seu cavalo tentou dispersar e acabar com o princípio de tumulto, que se não tivesse a mão da lei acabaria em banho de sangue. Foram chegando e desferindo golpes de baionetas e de chicotes, pegasse em quem pegasse. Os principais da vila foram chamados ao senado da Câmara, mas pouco ou quase nada puderam fazer.

Até as senhoras ricas e mulheres de juízes, vereadores, religiosas como Esmeralda Freitas Basto, a inglesa Dorothy Cunnis, mulher do capitão de navio Sinclair Cunnis e Tertulina Correa Prado, tia do advogado e afilhado de Simplício Dias, Bernardo Vieira. No largo da casa de morada, sol a pino, era negro dando no meio da canela. Tudo por causa das duas negras tempereiras que tiveram os tabuleiros revirados e os tamancos arrancados dos pés, quebrados e jogados no meio da rua. Falta de respeito aquilo, incomodar o coronel já no leito de morte?

No meio da manhã a multidão estava dando na beira do rio Igaraçu. Quem tentava descer das embarcações era retirado nos braços e obrigado a subir o barranco já descalço e de tamancos nas mãos. E tudo aquilo foi coisa de dois dos piores indivíduos que a vila da Parnaíba tinha até então, Coré e Papudo. Dois vagabundos de entre o cais e o largo da igreja! O primeiro, dito e batizado com o nome de Coriolano, era, diziam, ser irmão de Simplício Dias por parte de pai. Beberrão, nem negro nem branco, gabola, mas sempre que alguém ia lhe dar cobro puxava na frente o nome de Domingos Dias da Silva.

Papudo, o outro, vagabundo, arruaceiro, perdido em jogo de azar, família ignorada, andava de cara pra cima e de casa em casa à procura de quem desse um prato de comida ou roupa usada, uma gandola de soldado que fosse o que acabava trocando por alguns tostões ou aguardente nas proximidades da igreja dos pretos. Ninguém o tinha em boa conta porque quando não tinha o que comer se danava a pegar no alheio na rua entre a casa de Simplício Dias, que ficava em frente a um cemitério e a igreja da Graça. Em troca de alguns tostões de quem desembarcava de Tutoia, se dava a beber de uma vez só, jarros e mais jarros de água do rio Igaraçu. Nome de batismo e de onde veio era coisa que nunca ninguém soube.

Vieram dizer ao chefe da milícia que do jeito que estava a situação se agravando podia ser necessário disparar alguns tiros de bacamarte, mas ele não achou conveniente. Porque de espada e de chicote não dera vencimento!

Chegasse aos ouvidos de dom Pedro I no Rio de Janeiro, notícia de um massacre na vila da Parnaíba, tudo o que fez pela independência, há sete anos, iria por água abaixo. Mais de duzentas pessoas espalhadas até aonde a vista dava batendo um pé de tamanco no outro. Os negros carregadores de água acharam de atear fogo em barris velhos e por isso acabou provocando uma briga.

Na casa de Simplício Dias as duas negras tempereiras estavam nos fundos trancafiadas e teve quem dissesse ter visto as palmas das mãos delas estavam azuis de tanto levar bolo de palmatória! Mas era tudo conversa! Conversa pra aumentar ainda mais a revolta de toda aquela gente. Por volta do meio do dia, quando as canoas vindas do Maranhão voltavam pra casa, sem ter como acabar com aquela revolta, veio de dentro da casa do coronel a ordem de soltar as negras. Mas que nunca mais, enquanto vida Simplício Dias tivesse, queria ser incomodado na hora de descanso com raspada de tamanco em sua calçada!

*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras.

 

 

 

 

JORNAL INOVAÇÃO – UM DEPOIMENTO

JORNAL INOVAÇÃO – UM DEPOIMENTO

Elmar Carvalho

Em virtude do lançamento da edição extraordinária do Jornal Inovação, comemorativa dos 40 anos da derrubada e queima dos tapumes, que escondiam os escombros da Praça da Graça, e da publicação do livro coletivo Salada Seleta, resolvi republicar na internet este meu depoimento sobre esse bravo periódico alternativo mensal, que breve fará 42 anos do lançamento de seu número inaugural. O evento aconteceu no entorno da Banca do Louro, que foi um admirador e amigo do Inovação e seus colaboradores.

O jornal Inovação foi, sem sombra de dúvida, o mais consistente e mais duradouro jornal alternativo a circular em terra piauiense, pois o seu primeiro número foi lançado em dezembro de 1977 e o último, em janeiro/fevereiro de 1992, numa edição especial e extemporânea, que foi na verdade o seu canto de cisne.

Este trabalho é um simples depoimento, escrito quase ao correr e sabor da pena, das lembranças e da saudade, embora sem perder de vista os documentos e os fatos concretos, além de informações verbais, e produzido por quem viveu intensamente essa aventura, na verdade uma odisséia, para a Parnaíba do início do jornal. Não pretende esgotar o assunto, mas apenas servir de apontamento para um trabalho de mais alentado fôlego, a ser feito por quem tenha mais tempo e mais paciência do que eu para pesquisar o arquivo do jornal e outras fontes, pois o periódico e o Movimento Social e Cultural Inovação (que lhe servia de esteio), bem se prestam a uma dissertação de mestrado ou a uma tese de doutorado, porquanto a meu ver não existiu em Parnaíba, e talvez mesmo no Piauí, uma proposta cultural e de luta social mais bonita do que a que se lhes erigiu em torno.

Em seu primeiro número, já o jornal, em edição mimeografada, tipo apostila, delineava a sua linha de ação e editorial, quando denunciava a carência cultural da Parnaíba do final de 1977, ao dizer em sua primeira página: “Somos carentes de bibliotecas, centros culturais de nível mais elevado e tudo que a juventude sinta estar realmente segura, apoiada por órgãos municipais, sociedades filantrópicas e outros órgãos deveriam olhar mais pela cultura parnaibana.” A seguir dizia que a sociedade, a exemplo do que ainda ocorre hoje, só queria saber de diversões, sobretudo em boates, restaurantes, bares de esquina e bate-papo sem interesse cultural. Ainda nesse primeiro número, se dizia alinhado com o MDB, partido de oposição ao regime militar, na época do bipartidarismo.

Nos seus primeiros passos e vagidos, o pasquim foi saudado por outros periódicos, entre os quais, o jornal O Dia, de Teresina, edição de 30.04/01.05.78, que trazia uma reportagem sobre a imprensa alternativa. Estampava as capas do pasquim-mor, o Pasquim (este, assumido até no nome), de circulação nacional, e a do Inovação, nº 6, de abril/1978, tendo como legenda a frase: “surge um ‘nanico’ em Parnaíba”. Ou seja, um nanico federal ao lado de um nanico estadual.

 O poeta, escritor e professor Alcenor Candeira Filho, em seu importante livro “Aspectos da Literatura Piauiense”, publicado em 1993 pela Editora e Gráfica da Universidade Federal do Piauí, reconhece que no início o jornal manteve relações de cordialidade com as mais importantes lideranças do MDB, embora sem vinculações ideológicas com esse partido político. Contudo, ainda nos primeiros números, o jornal passou a atacar um dos próceres do MDB de Parnaíba, o prefeito João Batista da Silva, apontando as mazelas e equívocos de sua administração.

Ainda nesse livro encontramos a seguinte informação: “O Movimento Social e Cultural Inovação foi oficializado no dia 15 de janeiro de 1978, ocasião em que importantes figurões do MDB se fizeram presentes: o prefeito João Batista Ferreira da Silva (…), o vice-prefeito Roberto Broder, o ex-prefeito José Alexandre Caldas Rodrigues, o deputado federal Celso Barros Coelho, o presidente regional do MDB João Mendes Nepomuceno, o presidente da ACEP Francisco José Martins Jurity, o poeta Elmar Carvalho,  (…) e os jornalistas Reginaldo Costa e Francisco José Ribeiro.”

Além dos fundadores Reginaldo Ferreira da Costa e Francisco José Ribeiro, foram colaboradores da edição inaugural: Jeferson Ramos, Ângela, Bernardo Silva, Francisco Jurity, Marcos L. de R. Melo e Vicente Vicentino. Posteriormente, mas ainda no início, o jornal passou a contar com vários outros colaboradores, como Canindé Correia (uma espécie de guru do grupo), Alcenor Candeira Filho, Ednólia Fontenele, Airton Menezes, Vicente de Paula, Jorge Carvalho, Israel Correia, Diderot Mavignier, Mário Carvalho, Sólima Genuína, João Maria Madeira Basto, Fernando Holanda, Dr. Cândido Athayde, Dr. Celso Barros Coelho, Porfírio Carvalho, Francisco (Neco) Carvalho, Jonas Carvalho e Elmar Carvalho, além de outros colaboradores circunstanciais.

O Reginaldo Costa, além de fundador, foi seu diretor, redator e uma espécie de faz-tudo. Era um líder e incentivador. Era, verdadeiramente, um dínamo incansável. Várias vezes o vi varando dia e noite, preparando algumas das edições. Então é que se via a força de um ideal, slogan da global TV Rádio Clube (enquanto o do Inovação era um jornal sem colunista social), pois o Reginaldo fazia todo o trabalho de datilografia, montagem e planejamento gráfico, seja utilizando estêncil comum ou os destinados a mimeógrafo eletrônico.

Na primeira fase – a fase do mimeógrafo, de formato apostilado – o jornal foi quase sempre editado em Parnaíba, de forma algo clandestina, contando com o apoio de pessoas abnegadas e idealistas, cujos nomes ainda não podem ser revelados.

Em sua segunda fase, o Inovação tornou-se o primeiro jornal em off-set de Parnaíba, cidade que se orgulha de haver sido pioneira em várias coisas no Piauí. Era publicado em tamanho tablóide, e trazia várias fotografias e ilustrações de artistas parnaibanos, como Flamarion Mesquita, Bartolomeu Martins e outros mais. Portanto, registrou muito da História parnaibana recente, através de suas fotografias, desenhos, charges e cartuns. Mais uma vez era o Reginaldo, utilizando-se somente de uma pequena e modesta máquina de escrever elétrica, de cola, tesoura e estilete, quem fazia toda a diagramação, montagem e planejamento gráfico do valoroso e valente alternativo.

Na terceira fase, também em off-set, o Inovação quis seguir o padrão da grande imprensa, ao adquirir um tamanho maior, embora com menos página. Mas, então, já era o princípio do fim. Já as dificuldades de toda ordem, sobretudo as financeiras, começavam a falar mais forte e mais alto, o que terminou culminando com a desativação do jornal, cuja última edição foi aquela a que já me referi, de janeiro/fevereiro de 1992, que visava sobretudo a homenagear o seu grande incentivador e admirador Mário Carvalho, que falecera um pouco antes. Nessa edição de luto e de saudade foram publicados vários artigos, depoimentos e crônicas sobre o ilustre morto, escritos por Elmar Carvalho, Jonas Carvalho, Reginaldo Costa e João Maria Madeira Basto. Havia ainda um belo trabalho humorístico de quadrinhos, denominado “Expurgado por um desenhista expurgado”, da autoria do velho e sempre novo colaborador Flamarion Mesquita, e uma entrevista com o gerente executivo do Projeto de Irrigação Tabuleiro- Litorâneo, além de uma crônica do próprio Mário Carvalho, intitulada “A bodega do Zé Bento”, dentro da coluna “Projeto memória de Parnaíba/Jornal Inovação”. O editorial, além de ratificar o mesmo ideário do primeiro número, prometia a continuidade do jornal. Foi a primeira e última vez em que o Inovação não cumpriria uma promessa, pois foi aquela a sua derradeira edição, a sua última pá de cal e o seu verdadeiro e glorioso ocaso. O Inovação, de rica história e de bela trajetória, não mais circularia.

Logo no seu primeiro número, de dezembro de 1977, o Inovação trazia em suas páginas o conteúdo e a linha editorial, que seriam a sua marca registrada, até a última edição de jan./fev. de 1992, já referida e descrita. Nessa primeira edição, como nas demais, o jornal fazia reivindicações, críticas e apontava soluções. Tinha uma preocupação com os problemas sociais da cidade, principalmente das comunidades mais carentes. Demonstrava sintonia com o que se passava na aldeia global, ainda sem o rótulo globalizado da atual e famigerada “globalização”. Apresentava matérias literárias e culturais, além de se preocupar com a educação no município. Tudo isso seria uma constante, até o seu número final.

E assim se passaram dez anos, como diz a imortal canção popular. Nessa oportunidade, em artigo publicado no próprio periódico (nº 69 – janeiro/1988), titulado “Inovação – 10 anos de luta”, assim me pronunciei sobre o decênio: “Como sua direção editorial é de isenção e imparcialidade face às causas que defende, tem encontrado barreiras quase inexpugnáveis, apenas transponíveis graças ao esforço, que busca na própria dificuldade a sua própria força e a sua razão de ser (…)” E arrematei o texto, em alusão aos duplos sete anos de trabalho de Jacó, em sua luta pela conquista da bela serrana Raquel, que lhe era prometida e negada pelo pai Labão, com essas palavras: “E se outros dez anos não forem bastante, que outros dez sejam trilhados, apesar das ingratidões e da precariedade da vida fugaz”.

Em números mais recentes, expressivas figuras do mundo literário e cultural parnaibano, como Danilo Melo, Wilton Porto e José da Guia Marques, vieram integrar a plêiade inicial dos “inovadores”, mantendo-se a qualidade jornalística e literária do jornal, com pessoas do porte das mencionadas. Com o nível literário e cultural dos colaboradores, e depois com a impressão pelo sistema de off-set, o jornal mantinha-se num nível nem de perto alcançado pela imprensa parnaibana ainda hoje. Era um jornal informativo e de opinião, mas sempre combativo. Além das matérias “sérias” – reportagens e artigos – o alternativo também estampava excelentes matérias literárias, que marcaram época, no campo da poesia, da crônica e do conto.

Ainda em 28.08.83, através do Jornal da Manhã, assim eu já me pronunciava sobre o nosso pasquim: “Inovação é, atualmente, para algumas pessoas de Parnaíba, um jornal maldito. E incômodo, muito incômodo. Mas vale ressaltar que não obstante isso, ou exatamente por isso, é mais vendável e discutido que a grande imprensa de Parnaíba. Creio que em virtude de sua independência, de sua coerência para com a verdade, e de sua não omissão diante de fatos injustos e nocivos à comunidade”.

É preciso que se diga e agora vou dizer, sem vaidade, mas também sem falsa modéstia: antes de Alcenor Candeira Filho, com seus dois livros (“Sombras entre Ruínas” e “Rosas e Pedras”), impressos em mimeógrafo, pioneiros, inclusive em termos de Piauí, da utilização desse equipamento na confecção de livros, que passou a designar uma geração literária, deste escriba e do poeta V. de Araújo, ambos com poemas publicados, ainda nos idos de 1977/1978, nas páginas de “Folha do Litoral”, o que se via em Parnaíba eram poemas obsoletos e formalmente ultrapassados, sobretudo sonetos de cunho parnasiano, escola já destroçada em 1922, pelo movimento dos modernistas, mas cujos influxos ainda não haviam chegado a Parnaíba, ao menos publicamente, através de livros e jornais. Não mencionei o nome de Renato Castelo Branco em virtude de este notável escritor e poeta ter-se radicado em São Paulo há muitos anos e não haver publicado seus poemas modernistas em Parnaíba. Com o surgimento do Inovação, que provocou uma verdadeira revolução cultural e literária em Parnaíba, houve o ambiente literário propício para o aparecimento de novos nomes, que se somaram aos já referidos.

Com essa ambientação cultural criada em torno do Movimento Social e Cultural Inovação e do seu órgão de imprensa, houve a promoção de palestras, seminários e debates, inclusive com a integração entre Parnaíba e Teresina, antes tão distanciadas. Também a nossa gestão junto ao Diretório Acadêmico “3 de Março”, com a promoção desses eventos, e também de festival de música, jornada cultural e publicação de cartaz e livro de poemas, concorreu para essa efervescência artística, dantes nunca vista e nem depois, em nossa avaliação. Poetas de Parnaíba participavam de eventos em Teresina e vice-versa. Livros foram publicados com a presença de poetas dessas duas cidades. Basta que se compulsem as coletâneas “Aviso Prévio”, “Galopando” e “Em três tempos”, nas quais marcaram presença Alcenor Candeira Filho, Kenard Kruel, Paulo de Athayde Couto e Elmar Carvalho.

Graças sobretudo ao dinamismo e senso de organização do Reginaldo Costa, o alternativo sobrevivia independente de grupos políticos, e por isso tinha voz altiva e ativa. O jornal tinha um setor de assinaturas, que eram sempre renovadas, tanto de pessoas residentes em Parnaíba como em outras cidades e estados. Igualmente, possuía sua área de propaganda, quase sempre composta de anunciantes fiéis, que se mantiveram ao longo de toda a vida do periódico. Além disso, havia as pessoas que colaboravam financeira e economicamente, de forma espontânea, em virtude de admirarem o trabalho realizado. Esses três fatores contribuíram para a manutenção do alternativo.

Durante vários anos o jornal manteve uma biblioteca no centro de Parnaíba, onde ficava a sua sede, que era bastante freqüentada, sobretudo por jovens admiradores do trabalho desenvolvido pelos “inovadores” e sedentos por perspectivas culturais e nobres ideais, além de aspirarem a uma sociedade mais justa e mais fraterna, que era na verdade a pregação mais constante do Inovação, e talvez a sua utopia e desiderato final. Essa biblioteca prestou relevante serviço, além de ter servido de fator de integração e interação entre o jornal e seus leitores.

O jornal foi realmente pioneiro e inovador em várias posturas. Não foi um órgão meramente informativo e laudatório, mas formador de opinião, cultural e denunciador das arbitrariedades, desvios, desmandos e falcatruas administrativas, tanto em nível local, como estadual e federal. Não apenas denunciava, apontava soluções e sugestões. Foi talvez o único a verificar os problemas das comunidades, favelas e povoados. Inovou ao trazer na maioria de suas edições importantes entrevistas, sendo que algumas merecem destaque: a de uma prostituta anônima, humilde e pobre; a de Chagas Rodrigues, por ocasião de seu retorno à cena política do estado; a do padre Leonardo Martin, da linha progressista da Igreja, que parece ter levado uns puxões de orelha de seu bispo, pois depois tentou se retratar, embora a fita magnética provasse haver ele realmente falado o transcrito na entrevista; as concedidas pelos intelectuais e escritores Alcenor Candeira Filho, R. Fonseca Mendes e Assis Brasil; a do padre Ladislau João da Silva, a que farei referência à parte. Teve, ainda, o pioneirismo de trazer encartado em vários números um suplemento especial sobre variados assuntos. Foi igualmente o primeiro a fazer pesquisas de formato científico, com planilhas elaboradas pelo estatístico e professor Batista Teles, da UFPI, a respeito de problemas dos bairros, periferia e favelas parnaibanos, detectando problemas e perspectivas, que pudessem servir de orientação à administração municipal. Ressalte-se, também, o pioneirismo em promover debates e palestras, além da criação e manutenção da biblioteca, com livros literários, sociológicos, históricos e sobre economia, além de outros. Outro pioneirismo já foi ressaltado: a sua própria impressão em off-set, que possibilitou a utilização de fotografias e ilustrações. Inovou, ainda, ao criar uma seção de cartas, até por uma necessidade, pois vários leitores enviavam correspondências de apreço, solidariedade e admiração. Como se tudo isso não fosse o bastante, dedicava páginas às manifestações literárias e culturais.

Foi um jornal tão corrosivo e independente em suas denúncias, que seu diretor Reginaldo Costa e os colaboradores Bernardo Silva e o hoje deputado Olavo Rebelo foram processados, os quais tiveram por advogado o jurista Celso Barros Coelho. Os processos, de autoria do prefeito Batista Silva, incomodado com as denúncias contra sua administração, terminaram sendo arquivados. O Reginaldo foi, por mais de uma vez, agredido fisicamente. Outras vezes, membros do jornal sofreram ameaças, inclusive eu mesmo.

O que talvez mais incomodasse no jornal fosse o nível de seus redatores e colaboradores, além da criatividade, aliada a uma linguagem irônica, humorística, e muitas vezes debochativa, que tiravam do sério os autoproclamados “homens sérios”. Isto para não se falar nos editoriais e reportagens, que eram verdadeiros açoites, nos lombos dos pulhas e aproveitadores de todos os matizes.

Apesar de no seu início, como já foi dito, ter sido impresso em mimeógrafo, no formato de apostila, era mais lido do que a imprensa tradicional de Parnaíba. Circulava bastante. Era lido, discutido e comentado. Passava de mão em mão, e era recomendado a outros leitores. Tornou-se um formador de opinião, faceta que incomodava sobremaneira a administração municipal, que tentou inviabilizá-lo, por diferentes meios, inclusive com a tentativa de aliciamento de um dos seus integrantes, com o aceno da criação de um outro jornal. Inclusive, sob os auspícios do prefeito Batista Silva, um jornal, o Abertura, foi criado, com a participação de colaboradores do Inovação, suponho que com a finalidade velada de desagregar o grupo. Ambas as tentativas não obtiveram êxito. Contudo, é bom que se diga, algumas das sugestões e alternativas do jornal foram acatadas, e algumas denúncias inibiram ações nefastas à cidade.

Para que se tenha uma pálida idéia de quanto o jornal se tornou incômodo, basta que se diga que vários de seus colaboradores sofreram ameaças e perseguições em seus empregos. A situação se tornou tão difícil que, a partir de determinada época, ainda na primeira fase, a do mimeógrafo, o jornal teve que ser impresso em Teresina e Fortaleza, contando com o apoio de padres da linha progressista da Igreja Católica e do Sindicato dos Bancários, pois o tempo e todas as portas de entidades estatais e paraestatais se fecharam para ele, e não havia quem tivesse a coragem de lhe ceder equipamento mimeográfico.

Com efeito, a importância do jornal era tão elevada e a sua influência tão marcante, que vários jornais surgiram sob seu influxo, graças ao ambiente cultural, literário e libertário, que lhe surgiu em torno, como uma de suas conseqüências. Gravitando em torno do Inovação, contando com seu apoio logístico, moral e até mesmo material, e tendo como colaboradores vários de seus membros, podem ser elencados os seguintes jornais: Litoral News (grupo Ônzimo), Impacto (grupo de jovens), Periferia (Camp), Folha Estudantil (estudantes do C. E. L. R.), Juventude e Participação (Ginásio Clóvis Salgado), Tetéu (D. A. “3 de Março”), Abertura (Grupo Força Jovem), Caminhando (universitários do C. M. R. V.), Querela (grupo Querela), Hora do Estudante ( estudantes secundaristas), Batalha do Estudante (Clube de Leitura do C. E. L. R.) e Força Jovem (estudantes secundaristas do Grupo Força Jovem).

Os principais articuladores do Inovação eram boêmios; boêmios no bom sentido da palavra, no sentido de que éramos apreciadores de uma cerveja estupidamente gelada com tira-gosto de caranguejo e de uma boa música. Nesses momentos de libações etílicas, como diria o folclórico e histórico Pacamão, traçávamos estratégias administrativas e políticas para o jornal; levantávamos pautas e matérias, além de que discutíamos problemas internos, que bem podiam ser a administração de egos, acaso momentaneamente inflados, como a discordância saudável em torno de algum assunto. Também eram discutidos os problemas financeiros e econômicos do jornal. Éramos um grupo homogêneo, até certo ponto apenas, pois havia os mais pragmáticos e os mais românticos, aqueles que acreditavam que a ditadura militar poderia ser derrubada a partir de um poema. E, por acaso, o regime militar não terá caído por causa da força da poesia – a poesia dos ideais e das ideias?

Agora, sim, vamos ao caso da entrevista com o padre Ladislau – Ladislau João da Silva. Creio que nos últimos meses do primeiro semestre de 1981, o referido sacerdote foi espancado por um latifundiário de Esperantina (ou por pessoa a mando deste). O proprietário se sentia naturalmente incomodado com as pregações e com as campanhas de conscientização política do padre, que inclusive organizara, por ocasião das comemorações do 7 de Setembro, uma passeata com trabalhadores carregando seus instrumentos de trabalho, como foices, enxadas, machados, etc. Suponho que o latifundiário e outras pessoas graúdas de Esperantina se sentiram irracionalmente ameaçados, daí por que o vigário sofreu o espancamento, fato que obteve alguma repercussão na mídia estadual, embora não tanto como merecia. Por essa razão, embora o Inovação não dispusesse de estrutura, eu e o Reginaldo resolvemos ir a Esperantina, bem distante de Parnaíba, para entrevistá-lo. No auge de nossa juventude e de nossa saudável boêmia e “irresponsabilidade”, seguimos pela manhã, em minha motocicleta, parando em quase todos os botecos de beira de estrada para tomarmos uma “calibrina” e batermos um papo. Chegando à cidade de Batalha, já nas proximidades de nosso destino, nos demoramos um pouco, em um bar, e entramos numa inconseqüente discussão sobre quem era maior: se Chico Buarque ou Ivan Lins. Eu defendia o primeiro, o Reginaldo, o segundo. Evidentemente, ainda não chegamos, passados quase vinte anos, a uma conclusão a respeito. Fizemos uma longa e bela entrevista, publicada com todo destaque na edição de nº 37, junho/julho de 1981, do Inovação, inclusive como Suplemento Especial, com direito a capa ilustrada e tudo mais. A viagem em si e a conversa com o entrevistado me renderam o poema “7 de Setembro”, dedicado ao padre, e publicado na mesma edição da entrevista, em que eu vociferava com toda a força de minha ardente juventude:

       Ai! Guernica

       Ai! Picasso

Ai! grito explodindo

em forma de cogumelo

de uma grande dor

       atômica

       atônita

       agônica

       e sem

       sentido.

Episódio rumoroso, que mereceu todo o interesse do jornal, foi o da destruição da Praça da Graça, pelo prefeito Batista Silva. O logradouro foi destroçado, com a finalidade de que uma outra praça (moderna) fosse construída em seu lugar, em vez de ser apenas preservada e restaurada a já existente, que era de grande beleza, e fazia parte do patrimônio afetivo e sentimental de várias gerações de parnaibanos, que ali brincaram, namoraram, amaram e passearam com seus filhos e netinhos, sendo o recanto encantado de tantas recordações e saudades. O fato é que a praça foi aniquilada, e os meses se passaram sem que uma outra fosse construída. Os escombros foram devidamente ocultados da vista dos parnaibanos, através de um tapume de madeira compensada. Eu sei disso muito bem porque morava na Praça da Graça, mais exatamente no apartamento dos Correios, de onde eu vislumbrava, outrora, uma mágica nesga da velha e bela praça. O Inovação que, como já frisado, se tornou um formador de opinião, e tinha muita força na comunidade, especialmente junto às lideranças mais jovens, começou uma veemente campanha pela reconstrução da praça, cujos tapumes chamava de “Muro da Vergonha”. As verrinas e catilinárias atingiam de morte o prefeito e os mentores da infeliz idéia de destruição do logradouro. A luta do pasquim começou a apimentar o brio e o sentimento da mocidade parnaibana, o que terminou culminando com a derrubada do “Muro da Vergonha”. Na noite de 31 de agosto de 1979 vários estudantes e pessoas do povo derrubaram os tapumes que encobriam os escombros da praça. Empilhavam as peças de madeira e tocavam fogo, numa verdadeira, guardadas as proporções e os motivos, derrubada da Bastilha, que no nosso caso denominamos de “Derrubada do Muro da Vergonha”. Eu tudo presenciei, pois como já disse morava na praça. Peguei uma bicicleta e fui chamar o Reginaldo Costa e o Bernardo Silva, que através do maldito/bendito Inovação contribuíram para que essa “revolução” acontecesse, o que terminou por forçar a reconstrução da praça, embora num modelo que não tinha toda a beleza e encantamento do anterior. O editorial, escrito pelo prof. Benedicto Jonas Correia, descreve o episódio com exatidão e veracidade, e lhe dá uma correta interpretação histórica e sociológica. O jornal dedicou um Caderno Especial sobre esse importante acontecimento da recente História de Parnaíba, inserido na edição de nº 22, de setembro/1979, na qual foi publicado o meu poema “Balada da Praça da (Des)Graça”, cujos versos finais descrevem o verdadeiro carnaval cívico, em que houve queima de foguetes e bombas de São João, com pessoas e carros circulando e buzinando em torno dos destroços da praça, que varou a noite do dia 31 de agosto até a manhã do dia seguinte:

Mas no dia da vingança

da derrubada do “Muro da Vergonha”,

que impedia o povo de contemplar

a terra revolvida, o relógio

tombado, a pérgula arruinada,

o povo percorria as ruas,

em verdadeiras passeatas marciais,

em olímpica apoteose,

sob o aceno das palmeiras imperiais,

que antes choravam orvalhos

em prantos, lamentações e ais

pela ruína dos cimentos,

das pedras e dos cascalhos.

 O Inovação foi um jornal que marcou toda uma época, a época em que circulou, em que passava de mão em mão, em que era discutido, incentivado, admirado e aplaudido. Outro não existiu antes, mais valente e destemido, nem tampouco existiu nem existirá depois. Marcou de forma indelével toda uma geração, a geração daqueles que o fizeram com amor e dedicação e sem nenhum apego aos metais.

Encerro este depoimento com as mesmas palavras que disse, mais de década e meia atrás, e que foram transcritas pelo também ensaísta Alcenor Candeira Filho, em seu precioso livro, já referido: “Se alguém, algum dia, escrever um ensaio isento e imparcial sobre a cultura parnaibana não poderá olvidar, jamais, o jornal INOVAÇÃO”.

Texto publicado na revista Cadernos de Teresina, ano XII – nº 31 – dezembro/99, no Almanaque da Parnaíba, na plaqueta Aspectos da Literatura Parnaibana e no livro A Poesia Parnaibana.

CIARLINI EM PROSA E VERSO

O labirinto de nossas escolhas

CLAUCIO CIARLINI(*)

Várias são as prisões que nos submetemos no decorrer de nossas vidas.

O livre arbítrio, famosa “dádiva divina” até para os que se dizem religiosos convictos, acaba por se tornar uma verdadeira “faca de dois gumes”, pois se podemos a tudo fazer, se nos é dado o direito de pensar, decidir e seguir infinitos caminhos, sejam eles quais forem, por que será que então, sofremos tanto?

Sendo castigados por nossas mentes, torturados pelas consequências de nossos atos, perseguidos por nossas ações… Uma palavra dita costuma sugerir, muitas vezes, mil interpretações que na maioria dos casos, vagam longe do real significado que dela foi incumbido. Um ato de livre escolha pode acarretar um conjunto de problemas, que o individuo, em sua fraqueza humana, dificilmente irá suportar, deixando-se ceder, cair ao chão, com o peso de sua culpa e remorso.

A sociedade se faz assim, num complexo e confuso emaranhado de versões de nós mesmos e dos intermináveis destinos que tomamos, como que presos nos labirintos que nossas próprias consciências criam, no intuito de que nunca, ou seja, jamais venhamos a conhecer a verdade.

Seguimos, então, ofuscados pelo brilho da luz que nos atinge, tentando nos esconder na noite, mas certos de que, nosso dia chegará… A “dama da foice”, como diriam alguns, não possui clemência: sorrateira, espreita na sombra com a paciência de um felino, pronta para dar o “bote”, e antes mesmo que pensemos sobre o que nos espera do encontro com célebre figura, somos envoltos por seus braços anestesiantes, e dormentes seguimos… Pra onde? É uma pergunta da qual, dificilmente obteremos resposta.

Fragmento extraído de  sua obra: Inevitável (2009).

Quem dera eu pudesse transcrever para esta folha

Todo sentimento compartilhado

Cada momento vivenciado

Seja no meio virtual ou na vida

(se é que existe essa distinção)

Quem dera eu pudesse demonstrar o tamanho da emoção

Que tem sido para mim a cada poema compartilhado

Amizade construída

Tanto na hora mais sofrida

Como no momento mais celebrado

Quem dera eu pudesse fazer deste momento de celebração

Uma constante

No intuito escapar dos altos e baixos

Que a cada instante

Nos pega de surpresa e nos leva ao chão

Embora com isso, nos faça ainda mais fortes

Quem dera eu pudesse ter

O dom de Alciomar

De conseguir com maestria verbalizar

Em forma de protesto (forte e social) aquilo que o indigna

Como também eu queria ter a energia criativa de Alexandre

Alimentada pelo Sol, tal qual a Superman

Em meio a risadas escrachadas e coração dos mais gigantes

Quem dera eu pudesse ter a cultura de Francisco Carlos

Podendo sair por aí, a incentivar e promover tantos

Sem nunca se perder na vaidade

Quem dera eu pudesse ter a capacidade

Deste incrível e gigante ser humano chamado Francisco-Ana

Que faz com que eu enxergue o mundo das Letras com esperança

E o que dizer de alguém como Daltro Paiva?

Que transforma dor em amor

Que consegue converter em poesia

Tudo que por ele, um dia, é tocado

Quem dera eu pudesse também ter

A incrível sensibilidade de Emanuel Carvalho

Um cara que eleva o termo amizade ao mais alto nível

Pois realmente pode-se contar com ele. E com sua poesia.

E Francisco Fernandez?

Com seus versos que impactam e que nos arremessam

A outros patamares…

Enquanto que Raphael, com sua forte poesia,

Inspirada por vezes dos Anjos

Nos ajuda a perceber que não devemos aceitar

Tudo que venha do sistema

E Filipe, que nos ensina por onde poderíamos chegar,

Por meio do amor à métrica e a rima,

É… quem dera eu pudesse capturar um pouco de cada…

Dessa forma eu poderia ter

Um pouco do talento incrível Jailson

Para música, para o poema, para crônica,

E para enfrentar dilemas,

Sempre com a cabeça fria, ou aparentemente,

Utilizando sempre da razão, mesmo em meio à emoção

E ainda tendo sensibilidade,

Tal qual a de Jaque Silva

Com seus versos de emoção

Demonstrando ao mesmo tempo

Como podemos ser frágeis e indestrutíveis

Que nem o grande músico e poeta Jefferson Portugal,

Que constrói suas rimas pautado no conscientizar

Quem dera eu pudesse ter um pouco do seu dom, de protestar

E ainda possuir a ternura, mesmo na batalha, desta sábia

Professora e poetisa, além de tudo grande amiga: Joyce

Quem dera pudesse ter o axé de Gualberto Junior

Único no ser. Filho. Do qual devoto o mais alto dos respeitos!

Assim como Leonardo, irmão de batalha já um bom tempo

Quem dera eu pudesse ter um pouco de sua fé

Que não se quebra mesmo em meio às piores tormentas

Quem dera pudesse ter a imaginação de Dona Lua, Luana

Como também sua capacidade, de ter sempre esse sorriso

Mesmo nos dias desagradáveis

Semelhante a Marcello

O eterno pescador, homo cactos

E tantos outros gigantes livros que ainda lançará

Sempre com muita criatividade

Pois quem dera eu,

Ao menos ter a sua grande humildade

Mesmo em meio aos maiores elogios

No que chega a vez de Morgana Sales

De mente inquieta por natureza

Num mundo repleto de incertezas

Escrevendo poesia

Como uma forma de vencer toda e qualquer dor

Sendo exemplo do que é mais que inspirador

Mas falando de inspiração, chega a hora de um cara,

Que tem por demais essa qualidade

E quem dera eu pudesse ter, apenas um décimo de seu talento

De observar e registrar a tudo e a todos

E produzir subjetividade, este seria Gustavo Rosal

Que inaugura a reta final

Pois temos Souza Sousa Filho

No que me permito recitar o seu acróstico

Sábio é como o descrevo, com um poético tom de boêmia

Orquestra suas poesias geralmente socias, com muita maestria

Um grande coração, disposto a sempre colaborar com o que puder

Superou muita coisa nesta vida, e ainda assim, preservou o bom humor

Aquele professor que a gente respeita, ser humano acima de qualquer suspeita.

E assim também é quem carrega

O temperamento dos mais doces

Além de um grande talento para o desenho e para a escrita

Assim é Tiago Fontenele

No que chego ao último, e não menos importante,

Um tal de Junior Silva, cordelista dos bons

Que vive todo instante,

A inventar histórias das mais divertidas

Só Deus sabe de onde ele tira

Espalhando alegria pela internet todas as manhãs

(E nem é a Xuxa!)

Na forma de piadas e poesia, quando não as duas…

Pois é Versania, meus irmãos…

Talvez eu consiga ser um pouco de vocês…

Pois é justamente onde reside a graça da vida, não é?

O compartilhar de conhecimentos

Livre de muros e imposições…

Construímos um lar em Versania,

Que não é perfeito, que não é feito apenas de alegria

Mas é feito de irmandade, mesmo nas diferenças

Que foi construído da forma mais poética de todas

Através de um sonho, e em meio ao suor e sangue

Que nunca, eu repito, nunca, sairá de nós.

Aonde formos,

Passe o tempo que passar

Esse livro sempre estará

Na nossa mais linda lembrança.

Muito obrigado!

Parte do discurso de Cláucio Ciarlini pronunciado em 05 de setembro de 2018 durante o lançamento da coletânea Versania que reúne poemas de jovens parnaibanos e  também de outras cidades vizinhas. Neste discurso Claucio Homenageia cada um desses jovens .

Claucio Ciarlini(*) candidato à cadeira 27 da Academia Parnaibana de Letras que tem como patrono Ovídio Saraiva. 

 

Poetas que participaram da coletânea Versania

SOLTARAM AS ONÇAS

Vitor de Athayde Couto (*)

Domingou. Tudo funciona regularmente em Parnásia, como em todos os domingos de sol. Praia de manhã, almoço mais tarde, cochilo, banho seguido de muita brilhantina e laquê nas cabeças adolescentes. E Lancaster! Tal uma grande lagarta, a fila do cinema Paradiso vai se mexendo para a sessão das 18:30. Duas horas depois da vesperal, logo em seguida ao the end, todo mundo corre até a praça, em busca da tão ansiosamente esperada meorinha de caminhada, dando voltas, cantadas e comentando o filme: as moças rodam no sentido horário; os rapazes, no sentido contrário. Hora de se amostrar móde um relógio novo, saia plissada, conjunto Banlon, camisas-volta-ao-mundo, tudo novo, comprado no Rio, pela Cruzeiro. Só os malas incluídos e muito abestados não rodam. Ficam parados, no meio da praça, falando merda e frescando com quem passa.

A azaração tem que acontecer entre 20:30 e 21:00, quando termina a missa da catedral, de onde saem os pais corujas, de braços dados, arrastando as filhas não cinéfilas e alguns filhos bundões, direto pra casa. Quem fica com quem não fica, nunca se sabe. Mal se conhecem os sonhos, pelo menos até a hora em que chega a porra da realidade: 21 horas, anunciam as badaladas do sino desafinado da matriz. Hora de soltar as onças.

Esvazia-se o estacionamento socialmente estamentado pelos diferentes espaços reservados para automóveis, lambretas e bicicletas (ninguém falava báique), conforme as diferenças patrimoniais entre as famílias. Quem mora perto caminha pelas calçadas seguras, exceto os malas incluídos que vão de carro, ali pertinho, só para se amostrar. Ah, ia esquecendo o estacionamento de balecos da gente diferenciada. Ficava mais distante, depois do vento, móde o fedor de bosta. Agora são 21:08, a praça entristece e se desertifica. As tartarugas da pérgula nadam, silentes. Permanecem só o guarda e os seus eternos interlocutores de plantão, animados pelo corote. São os malas desincluídos, deficientes e mendigos sem teto, sempre de braços cruzados, olhando pro nada.

“Soltaram as ôôônças!”, grita um culumim, à distância. “Queima o tabaco da êêêma!”, grita outro. “É a tuáááma, Datilôôôia!”, mais outro. E assim, de culumim em culumim, a praça escurece em meio aos gritos saídos de bocas invisíveis, escondidas do guarda.

Os globos dos pequenos postes de ferro se apagam, móde economizar energia da usina da Rua Sete. Protegido pela escuridão, alguém arrisca e grita: “Seu Fulano é côôôrno!”. Normalmente, seu Fulano é quase sempre um grande e respeitável negociante rico que acabou de comungar, na missa da catedral, logo depois de pedir perdão pelos pecados, principalmente as mentiras, conspirações políticas, sonegação de impostos e traição conjugal; ou por ter espancado a mulher e uma frágil filha adolescente. Ele sabe que, amanhã, segunda-feira, começa tudo de novo. Mas Deus é bom e tudo perdoa sete vezes sete vezes sete… Afinal, ainda nem se sabia o que era preconceito racial, logo, isso não era pecado. Ser limpinha, mesmo sendo preta, era a primeira condição para ser uma boa curica ou babá. A segunda condição eram as chamadas “referências”, em que tudo vale.

Já em casa, enquanto repassam na mente as últimas imagens da vesperal, as moças de família vão sonhar, metidas em babydolls de náilu. Não sem antes de resumir no querido diário, sob a luz do abat-jour, as cantadas ouvidas entre 20:30 e 21:00. Para elas, a vida se concentra nessa meorinha sagrada, pela qual esperam a semana inteira, entre rezas e promessas fáceis. Isso ocorre em quase todas as semanas do ano. As moças de família odeiam as onças invisíveis que expulsam, com seus relógios, as pessoas da 2 praça. Odeiam o tempo que passa, e também o inverno. Quando chove, não tem domingo. A semana pula direto, de sábado pra segunda-feira. Sem praça, sem graça.  

Ainda na náite, alguns rapazes de família de bem (dizia-se: “da sociedade” haha) também abandonam a praça. Em vez de irem direto pra casa, dirigem-se aos cabarés, à procura de mulheres virtuais esgotadas pelo fim-de-semana, nas altas horas de domingo, quando resta só o bagaço. “Bem, pelo menos é mais barato”, lembrou um dos rapazes, para consolo das mesadas dos companheiros lupanáticos. Sorte é de quem tem pai cabarezeiro, pois é ele quem escolhe a “modelo mais top” e negocia o cachê, quando o filho completa 15 anos. No clube, a filha debuta. No cabaré, o filho é da puta que o pai escolhe e lhe apresenta – a sua primeira vez. Mimo de aniversário. Depois, ele apresenta o médico, a farmácia, os remédios… e o permanente sorriso orgulhoso de quem é pai de macho. Cepãdã, se ocorrer algum acidente da natureza, esse “paitriarca”… sei não… ou mata, ou se mata. Em compensação, presente de pai não-cabarezeiro é só livro. Que ódio! Quase sempre é o “Meu catecismo de preparação para a crisma” ou “Tarzã, o rei da jângal”. Mas poderia ser pior, por exemplo, um “Pequeno dicionário da língua portuguesa”, enquanto a irmã ganha “O pequeno príncipe” ou “Reinações de Narizinho”. E ainda com recomendação de colocar uma capa de papel impermeável fosco, e cuidar bem! “Não risque, porque vai servir para a sua irmã caçula!” haha.

Na praça, agora escura, só se vê uma lanterna, intermitente, móde economizar pilha. É o guarda brincando de vagalume. Pra afastar a solidão, apita e foca a lanterna nos cururus. Já no rumo dos cabarés, o magote grita, de uma distância segura: “O guarda não é mais aquele / o que que se faz com ele…”, etc. Sobretudo etc., porque soa mais forte. Pura vingança, porque o guarda dormiu e não cuidou da praça – que acabou sendo destruída.

Ao longe, no silêncio truvo, já dá pra ouvir o som da vitrola do primeiro cabaré, situado na rua da Mungubeira, xis com o Beco do Xêramijo. A voz grave do Nelson Gonçalves mixa com os chiados do vinil que gira no pick-up Garrard, cuja agulha há muito está vencida. Difícil achar outra, nem mesmo na Discolândia do Rei Momo. “Fica comigo esta noite / e não te arrependerás…”. Nunca entendi por que “lá fora o frio é um açoite”, se na Parnásia faz um calor da porra haha. A galera aperta o passo, mas, ao chegar na Mungubeira, alguns rapazes hesitam, devagar, quase parando. Faz que vai mas num vai. Finalmente, encontram uma pequena janela lateral, aberta. Corações trepidam. Aproximam-se mais. As cabeças grandes se apertam na janela, móde espiar.

 No salão principal, o corpo de um bêbado dança, sozinho, abraçado a outro corpo, invisível, de algum fantasma real. Por cima da carne seca, uma gata prenha se lambe. Outro bêbado dorme sentado à mesa, com a cabeça dentro de um prato onde um resto de farofa acabou grudando na brilhantina do seu cabelo. Um viado lava os últimos copos americanos de cerveja. Umas três ou quatro mulheres sobreviventes permanecem sentadas, em silêncio, à espera de alguma esperança. Elas ouvem a música com atenção, pela milésima vez, como se fosse a primeira. À sua frente, a cerveja quente remanesce do último freguês já apagado da memória. De vez em quando elas se revezam pra virar o mesmo disco do Nelson Gonçalves. Uma se levanta, troca o lado A, depois lado B, lado A-B-A-B-A… até o infinito. Aproveita a levantada e vai mijar mais um pouco de cerveja quente no penico indiscreto. Joga o produto pela janela do quintal. Depois, volta. Sempre ao mesmo lugar, onde reencontra o seu fiel campo energético que lhe dá mais alguma sobrevida noturna, enquanto espera a luz do dia para dormir.

Do lado de fora, ainda na janela, os corações adolescentes saltam de emoção. Emoção que nunca será esquecida, porque, na idade do urubu, é mais fácil ser feliz. Com muito ou com pouco. Tanto faz. Mesmo que o cabaré tenha sido apenas um sonho de menino.

(Este texto inédito integra a série “Crônicas de Parnásia”, livro em edição)

(*) Vitor Athayde Couto é um dos seis candidatos que concorrem à  cadeira de número 27 da Academia Parnaibana de Letras.

O SONHO DE ZÉ CACHAÇA

Nos Versos de Paulo Moura(*)

José Francisco de Oliveira, cabra-macho da região do Cariri. Destemido, trabalhador, casado com dona Itelvina, mulher de fibra, honesta, fiel ao marido, que  por um trisquin de nada, por causa de uma “branquinha marvada” quase desmantela seu casamento.

É como diz o poeta cordelista Paulo Moura:

“A cachaça é um produto

Que muita gente aprecia

Tem quem goste tanto dela

Que consome todo dia

Mas se não tiver cuidado

E não beber controlado

O cabra entra em ruína

Se dela não se afastar

Vai viver de bar em bar

Parando em cada esquina”

Pois foi isso que aconteceu com o José Francisco. De tanto beber recebeu o apelido de Zé Cachaça.  Exagerava  até perder  o caminho da sua casa.

Numa dessas vezes de exagero etílico, e com medo de levar uma sova de dona Itelvina, Zé cachaça chega em casa de fininho,  e corre  direto, sem fazer qualquer barulho, para sua alcova. Como descreve Paulo Moura:

“Uma vez passou da conta

Pois bebera em demasia

Chegou em casa à noitinha

Foi logo pra a camarinha

Pra a mulher não reclamar

E porque tava cansado

Se deitou, virou pro lado

E pegou logo a sonhar”

E quando nosso personagem acordou, e não viu a mulher deitada na cama, ao seu lado, como era o costume, ficou “brabo”!  Em vez de encontrar com dona Itelvina, adivinhem quem o Zé Cachaça encontra  dentro da sua casa?

“Levantou-se assustado

Esbarrou num véi barbado

E foi logo perguntando:

Não vi o senhor entrar?

O que é que faz no meu lar?

Vá logo se explicando!”

Então o velho barbado explica ao Zé que ele havia morrido.

“O homem, de terno branco

E um cajado de cêdro

Falou para Zé Cachaça:

Não temas, que eu sou São Pedro!

E este lar não é o seu

Pois você hoje morreu

E como não tem maldade

E foi um bom tabaréu

Vai morar aqui no céu

Por toda eternidade…”

Zé Cachaça então deu pra trás!  Não queria acreditar que tivesse morrido. Pediu então a São Pedro que falasse lá com o Nosso Senhor para lhe devolver a vida e prometia redimir-se do tal vício da embriaguez.

“Me ajude por favor

Peça pra Nosso Senhor

A vida me devolver

Se o bom Deus fizer isso

Eu juro por Padre Ciço

Que eu nunca mais vou beber!”

Então são Pedro disse-lhe que ele poderia voltar à terra, porém não mais na figura humana,  mas sim sendo uma galinha ou uma cadela.

Zé Cachaça matutou… matutou… e finalmente disse a São Pedro que preferia voltar na figura de uma galinha, pois tinha que ser galinha de granja. Segundo suas conclusões, numa cadela não daria certo, porque quando estivesse no cio teria que aceitar a cachorrada toda, e na forma de galinha de granja, a única coisa que iria fazer era se alimentar bem e botar ovo. Nem de galo precisaria, pois nas granjas, não existem galos para cruzar com as galinhas.  Assim ficaria livre de aceitar um macho por cima de si.

Só que São Pedro fez uma sacanagenzinha com ele e em vez de mandá-lo para uma granja,  o mandou sim, mas foi para o galinheiro de uma fazenda.

“Quando Zé abriu os olhos

Estava num galinheiro

Viu logo um galo tarado

Lhe olhando do poleiro

Que lhe falou sem tremer:

Você vai ter que escolher,

Não tenho nada de novo.

Aqui neste meu recinto

A galinha, ou choca pinto

Ou fica botando ovo!”

Se ele, ou melhor, ela a galinha, optasse por botar ovo, talvez se livrasse do galo, pois como é sabido e notório, galinha não precisa cruzar com o galo para botar ovo.

E foi assim  que o nosso personagem entrou em sua nova vida conforme finaliza o poeta  já citado:

“Zé fazendo grande esforço

Sentiu um ovo saindo

E ficou até feliz

Pois estava conseguindo

Tentando mais uma vez

Botou mais dois e mais três…

De repente, alguém lhe chama

E ele assuntando: quem é?

Sua esposa que disse: Zé?

Tu tás cagando na cama??”

(*) Paulo Moura é poeta, cordelista, escritor e  professor de História. Editor do blog desenvolve o projeto   “Educar com Cordel” que visa levar literatura de cordel para as sala de aulas, ensinando como surgiu a literatura de cordel, suas origens, sseus estilos, suas heranças. O Projeo Educar com Cordel é detentor do Prêmio Patativa do Assaré de Literatura de Cordel do Ministério da Cultura.