BREVE NOTÍCIA FAMILIAR

Miguel e Rosália, em pintura de Albino

 

BREVE NOTÍCIA FAMILIAR

Elmar Carvalho

Domingo passado, recebi de meu pai breve anotação manuscrita, feita a meu pedido, sobre os nossos avoengos. Ele registrou apenas o que sabia de memória, sem consulta a registros de livros cartorários e outros alfarrábios. Muitas informações contidas nesta nota estão nos livros “Vultos da História de Barras”, de Wilson Carvalho Gonçalves, e em “O Ponta-de-Rama” e “Ruas, Avenidas e Praças de Piripiri”, ambos de meu primo Fabiano Melo, de onde as colhi. Meu pai tinha apenas treze anos de idade quando foi chamado ao gabinete do diretor do tradicional Colégio Diocesano, do qual era aluno interno, numa época em que pouquíssimos piauienses conseguiam cursar o antigo ginásio.

Para que se tenha uma pequena ideia de como era restritivo, excludente e elitista o sistema de ensino, basta que eu diga que muitos de seus antigos colegas se tornaram governadores, senadores, deputados, magistrados e detentores dos mais altos cargos públicos do estado. Foi chamado, logo após concluir a prova parcial do dia 30 de setembro de 1939, para receber do diretor Padre Chaves, que depois se tornou um dos maiores historiadores do Piauí, a impactante notícia de que seu pai havia morrido. Era filho único do terceiro casamento de meu avô. Padre Chaves, que conheci e que concedeu a mim e ao jornalista Domingos Bezerra excelente entrevista, que publiquei na revista Cadernos de Teresina, editada pela Fundação Cultural que leva o seu nome, foi afetivo e cuidadoso ao dar a notícia, proferindo palavras de conforto e resignação;   recomendou que meu pai fosse repousar.

Meu avô tivera oito filhos do primeiro consórcio e nenhum do segundo. Diante desse inesperado acontecimento, papai voltou para Barras, a chamado de sua mãe, e só veio a concluir o ginásio muitos anos depois. Meu avô paterno se chamava João de Deus Nascimento; era filho de Emiliana e Silvestre Ribeiro do Nascimento. Graças a seu esforço e labor, fez prosperar uma gleba de terra, situada na data Luiz de Souza, e conseguiu amealhar algumas reses, engenho de cana e casa de farinhada. Era respeitado em sua localidade e na cidade de Barras, onde era muito conhecido. Para que se tenha uma idéia de sua personalidade marcante, basta que eu conte dois episódios de sua vida.

Certo dia, uma de suas noras, deu-lhe a notícia de que o marido estava de namoro com uma mulher da redondeza. Meu avô chamou um agregado de sua confiança e se dirigiu até certo ponto, perto da casa da amante de seu filho, de onde dava para ouvir as gargalhadas e arrulhos dos dois pombinhos nos colóquios e conciliábulos amorosos. Constatada a infidelidade cometida pelo rebento, ficou de tocaia. Quando ele retornava para casa, o abordou de forma enérgica, e lhe disse que se voltasse a “pular a cerca”, iria aplicar-lhe uma sova caprichada, de que ele jamais esqueceria. Não se soube da surra, porque não mais se soube de transgressão do rapaz. Eram os costumes severos da época, de fortes reprimendas.

Morava, na vizinhança, uma parenta de meu avô, creio que sobrinha, cega de nascença e entrevada, como se dizia antigamente. Levava a vida a cantar hinos religiosos e a rezar, em perpétua vigília e penitência. Meu avô, falecido em 1939, pedira para ser enterrado perto de sua cova. Talvez tenha sido recebido por ela, sarada de seus males, coberta pelo manto de glória e beatitude que deve ornar os que levaram uma vida de sofrimento, renúncia e conformação. No cemitério campestre da chapada de Luiz de Souza, perto de faveiras, sambaíbas, paus-d’arcos e pequizeiros, repousam, lado a lado, os restos mortais de meu avô João de Deus e dessa parenta, que aceitou com fé e resignação o sofrimento que lhe coube, e que viveu como um anjo, a orar e a entoar cânticos e “excelências” a Deus.

Meu avô conheceu minha avó na cidade de Barras, onde ela morava em companhia de seu irmão Elpídio Lucas Furtado de Carvalho. Chamava-se Joana Lina de Deus Carvalho e nascera em Piripiri. Era filha de Miguel Furtado do Rego. Era sua mãe Izabel Lina, de antigas estirpes cearense e piauiense.   Muitas décadas após meu pai deixar o seu pago, fui com ele conhecer o local onde ele nascera, que fica a poucos quilômetros da cidade de Barras. Vi meu pai tomado de profunda emoção, com os olhos marejados, a olhar o olho-d’água de sua infância, que ainda corria perene, a rever o buritizal da várzea e o morro verdejante onde se erguera outrora a casa de seu pai.

Meu avô materno se chamava José Horácio de Melo, nascido no lugar Campestre, município de Piracuruca, no dia 5 de agosto de 1893, e falecido em 13 de agosto de 1965. Era filho de Horácio Luiz de Melo e Antônia Quitéria de Carvalho. Horácio Luiz era filho de Antônio Luiz de Melo e Hygina Rosa de Menezes. Meu trisavô Antônio Luiz de Melo era filho de Onofre José de Melo e Cecília Maria das Virgens, oriundos de Pernambuco e fundadores da Casa do Desterro, situada na então Freguesia de Nossa Senhora do Carmo de Piracuruca. Desse casal descendem os Melo do Vale do Longá (Piracuruca, Batalha, Barras, Piripiri e Campo Maior). Antônia Quitéria tinha como pais João Bartolomeu de Carvalho e Mariana Rosa de Carvalho. Eram do município de Piracuruca. Minha avó materna se chamava Maria Carlota, e era chamada de Paroara, dizem que por causa de sua tez alva e rosada como essa flor. Pertencia às famílias Sousa e Mendes, de Piracuruca. Morreu jovem, quando minha mãe tinha apenas onze anos de vida.

Por essa razão, mamãe foi morar com sua tia, irmã de seu pai, Maria Cristina Lima de Melo. Com a morte desta, passou a morar com sua prima Mirozinha, minha madrinha, até casar-se com meu pai. Devo muito a essa madrinha, que me emprestava, através de meu pai, os livros da biblioteca do Grupo Escolar Valdivino Tito e os de seu próprio acervo. Mamãe não guardou traumas e nem mágoas de sua orfandade, e nem de ter morado com esses parentes. Pelo contrário, tinha uma quase veneração por sua tia e por sua prima, e lhes tinha uma devoção de filha e irmã. Quando falava delas, era sempre com saudade e respeito.

Nunca tive paciência para empreender pesquisa histórica e muito menos  genealógica, que acho importante, mas um tanto tediosa, de modo que desejei fazer apenas um breve registro, para que meus descendentes e irmãos conheçam um pouco dos nossos ancestrais. Aliás, meu pai, homem humilde, mas altivo a seu modo e no bom sentido da palavra, sempre foi avesso a empáfias e blasonarias de presumidas e pretensas nobiliarquias genealógicas, sabedor de que todos somos pó e de que ao pó da terra voltaremos. Só me falou, com mais detalhes, de nossos avoengos quando eu já tinha cinquenta anos de idade, por sinal em Piripiri, terra a que somos ligados por laços de sangue, no Auditório Osíris Neves de Melo, quando eu representava várias academias a que pertenço, a convite da professora Clea Rezende Neves de Melo, na solenidade em que foram lançados um livro dela e outro meu, o Lira dos Cinqüentanos.

Meu pai, ainda bem moço, veio para Campo Maior, onde trabalhou na Casa Inglesa. Posteriormente, ingressou no antigo Departamento de Correios e Telégrafos – DCT, através de concurso público, no ano de 1958. No início de sua vida de casado e de servidor público, morou no povoado Papagaio, hoje cidade de Francinópolis, por cerca de dois anos. O DCT virou ECT, e meu pai terminou indo para Parnaíba, onde por vários anos chefiou a agência local dessa empresa. Mas, amante inveterado e incondicional de Campo Maior, terminou regressando mais uma vez a minha terra natal, onde, aposentado, pratica dominó todos os dias com os irmãos Vicente, Antônio Wilson e Chico Andrade. Minha mãe consagrou todo seu esforço e dedicação a cuidar do marido e dos filhos. E como cuidou!…

OBSERVAÇÃO: o vertente registro foi acrescido, posteriormente, por informações contidas no trabalho Casa do Desterro, da autoria do genealogista e historiador Valdemir Miranda de Castro, publicado em 21.08.2015 no blog poetaelmar.blogspot.com.br, que faz parte do seu livro em elaboração A colonização do Vale do Longá.

18 de março de 2010

O bacamarte e a lança.

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*Pádua Marques. 

Mal havia tirado a xícara dos beiços, sozinho à mesa naquela manhã de março de 1825, Simplício Dias ouviu baterem com insistência na porta de entrada da sua casa na rua Grande. Na noite de véspera tinha ido dormir tarde escrevendo uma longa carta ao imperador dom Pedro I em que ao lado de outra do governador da província solicitava que fosse anexada ao Piauí a barra de Tutoia, no Maranhão. Essa desavença com aquele pessoal não podia ficar pra vida toda e tinha que ter um fim.

Elias veio dizer que logo de manhã antes do cantar dos galos haviam atracado no cais cinco canoas longas cheias de índios. Não dera ainda pra saber de qual tribo eram devido à escuridão, mas eram assim por alto uns vinte, e entre eles mulheres e crianças, alguns estavam ao que parecia doentes.  O desjejum de Simplício Dias, coalhada, tomada com bolo de milho e um pedaço de abóbora cozida, mal desceu na garganta. O medo subiu. Correu no andar de cima e foi buscar o bacamarte.

Sem dar nenhum sentido de acordar dona Isabel, as filhas e a criadagem, desceu as escadas e quando chegou no meio da rua de frente de casa foi logo cercado pelo pessoal da guarda miliciana. Simplício mal se deu conta, mas estava ainda com a roupa de dormir e com a cara inchada.

Elias se adiantou e disse que os índios estavam naquele momento subindo o barranco e vindo no rumo das casas de comércio e da igreja. De certo que chegaram com o tempo turvo, mas foram atraídos pelas lanternas das embarcações no porto.

Simplício Dias chamou os homens e falando mais baixo do que de costume deu ordens de que em qualquer caso não atirassem ou fizessem qualquer movimento bruto. Índio era bicho arisco e num descuido até podia haver morte se estivessem cercados e enfezados feito o cão.

Mas encarregou ao capitão do porto que ficasse de cima e de olhos bem abertos. Nunca tinha visto índio assim tão de perto na vida. Mas seria corajoso pra até chegar e conversar e saber o que queriam na Parnaíba.

O medo era de que tão logo vissem movimento nos armazéns e nas repartições do porto passassem e subissem o barranco indo acabar na frente da igreja. E estando eles ali e com o movimento e a curiosidade não quisessem mais arredar o pé da Parnaíba. Daí pra criarem confusão, era pouca coisa!

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Mas os índios ficaram lá embaixo do barranco no lado esquerdo, vindo da Barra do Longá. Entrando e saindo das canoas e chamando a atenção dos marinheiros dos navios. Não estavam em posição de beligerância, mas admirados com tudo.

Do ponto de onde estava Simplício Dias pode ver que eram até muitos. Eram de estatura pequena, cabelos pretos, encardidos e de pele escura. Como peça de vestir apenas umas cintas de algum tecido ou fibra de palha embaixo do umbigo.

As mulheres seguiam a mesma vestimenta e com outras cintas cruzando por debaixo dos peitos grandes as costas, carregavam umas crianças, que pelo visto ainda não eram de caminhar e tendo assim uns poucos meses de vida. Sobre armas, apenas arcos e flechas com menos de uma braça de comprimento. Houve quem dissesse que viu mais deles já na Barra do Longá vindo se juntar aos de Parnaíba.

Simplício Dias mandou que Elias fosse incontinenti fechar as portas da igreja e avisar a quem encontrasse pelo caminho que não abrisse porta de loja ou fosse o que fosse antes de suas ordens. Mas já era tarde. Os estabelecimentos já estavam abertos e o movimento vindo e indo pra o cais era o de sempre. Não teve como evitar. Logo o cais estava cheio de curiosos dando comida e tentando falar com os índios, se admirando do tamanho das canoas ou tirando brincadeiras com os soins.

Os embarcadiços, soldados rasos, bêbados, desocupados e negros de serviços no cais do Porto Salgado estavam ali com aquela curiosidade sem vergonha por causa das índias nuas. Não eram de certo bonitas, mas como se encontravam acabavam despertando neles certos desejos e saliências. Riam, debochavam, ofereciam moedas e alguma coisa de comer pra elas.

Naquela noite ninguém dormiu na Parnaíba, na parte mais próxima do porto, embora se soubesse que eram índios pacíficos que se perderam tentando alcançar as Canárias. O dia passou e a noite veio. Os índios foram perdendo a importância. No outro dia, quando a Parnaíba despertou bem cedo e foi ver, eles tinham ido embora.

*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras.

 

 

 

 

O aniversário do rei e do porco.

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*Pádua Marques.

Havia dezenove anos que fora autorizada pelo bispo do Maranhão que se criasse algumas paróquias na capitania do Piauí, entre elas a de Nossa Senhora da Graça, esta em Parnaíba e construída pela família Dias da Silva. Naquele domingo de 13 de maio de 1820 a vila estava em festa pelas comemorações dos 53 anos do rei dom João VI. Simplício e o Senado da Câmara estavam recebendo as representações de Viçosa do Ceará e do Maranhão. De vez em quando saía na janela e dava vivas ao rei e ao príncipe herdeiro dom Pedro.

Simplício fazia de propósito aquela festa toda. Se vingava da desfeita, de oito anos atrás, em julho de 1812 quando encabeçou uma relação de pessoas pedindo ao soberano de que a residência do governador da capitania fosse mudada de Oeiras pra Parnaíba, chegando a oferecer dinheiro de sua fortuna pra construir o palácio, pelo que não foi atendido, assim como a questão da alfândega. Mas agora era hora de mostrar quem mandava, embora já começasse a ver a pobreza se avizinhando.

Pra festa foram mortos cinco bois e duas vacas, dez porcos, uma infinidade de galinhas. Mandou vir de São Luiz cinco barris de vinho e dois de aguardente, conhaque. Nas cozinhas de casa e na de pessoas da família e vizinhos, as negras cozinheiras não largaram a barriga do fogão desde o sábado. Era carne assada e cozida e feijão misturado com os miúdos. Muita fruta, farinha, abóbora cozida, milho verde cozido e assado. Pela manhã houve missa solene na igreja de Nossa Senhora da Graça e no largo da casa as barracas com muita comida e bebida, uma fartura de dar inveja a festa de governador.

Também vieram de São Luiz, no Maranhão, cinco caixas de fogos de artifício, que seriam queimados após a missa da noite no largo da igreja e na frente da casa de morada dos Dias da Silva.  Na igreja dos pretos, do outro lado do largo, houve muito batizado e casamento. E pra animar a festa do rei dom João, veio um circo inteirinho. Grande Circo Venice, de Amedeo Picelli di Puntto. Vinha com cães adestrados, palhaços, cantores, anão equilibrista, engolidor de espadas, mulher barbada. No meio da missa os três escravos violoncelistas da casa de Simplício tocaram peças sacras. Logo na boca da noite começaram a chegar os convidados.

No cais do Porto Salgado as embarcações estavam embandeiradas. Era um sobe e desce de gente de Tutoia e povoados, vindo render homenagens ao rei dom João na pessoa de Simplício Dias da Silva. E vai que naquele movimento de todo dia, que não parava nem aos domingos, um homem com seu menino foi chegando no início da manhã, de canoa, com alguns porcos pra vender no mercado da rua Grande. Mal pisou em terra firme já foi abordado por Elias, escravo da confiança de Simplício Dias. Aqueles animais seriam pra servir de comida aos convidados!

 

O dono dos porcos quis criar confusão alegando pobreza e o único bem que tinha pra vender e levar algum tostão pra dentro de casa. Teve resposta que nem encompridasse conversa. Eram ordens lá de cima, de seu governador e senhor Simplício Dias da Silva. Sem ter pra onde correr e a quem pedir justiça, o homem caiu das carnes. Entregou os quatro porcos pra Elias e se retirou de cabeça baixa. Logo mais estaria bebendo aguardente, comendo feijoada e dando vivas ao rei com cara de porco.

Quando soube do ocorrido, já era passado o almoço e os porcos já estavam era servindo de comida lá no largo da igreja e na frente de casa. Deu nele raiva aquele malfeito do negro. Chamou Elias e perguntou quem deu ordens pra usurpar os porcos do caboclo. Tremendo feito menino com medo de relho nos couros, se coçando todo, o escravo disse que tinha sido o senhor seu rei dom João! Seu rei? E desde quando negro tinha rei?

Depois de coçar a cabeça Simplício meteu a mão no bolso e não encontrando nada mandou que fosse procurar no meio da praça o dono dos porcos.  Mas antes cuspiu no chão de tijolos. Antes de secar queria o dono dos porcos na sua frente. Dom João VI bem que podia ter outros defeitos, ser tratante e falso, mas nunca seria ladrão! E ele, Simplício Dias da Silva nunca haveria de ser alcunhado de pegar no alheio, muito menos porcos.

*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras.

As lágrimas da vaca

As lágrimas da vaca

Elmar Carvalho

Muitos dizem gostar de passarinhos. Mas os aprisionam numa gaiola. É uma estranha maneira de gostar, sem dúvida. Quem ama não mata nem maltrata. E isso vale para os feminicidas e passarinheiros.

Desde menino minha mãe nos advertia, a mim e a meus irmãos, para que não maltratássemos os passarinhos e os outros animais. Com efeito, nunca tivemos a cultura de engaiolar aves, com exceção de um casal de papagaios, que foi dado de presente a minha mãe, e que ela criou com todo mimo e carinho até seu falecimento. Os dois louros pareciam felizes, até mesmo no brilho e na vivacidade do olhar, e nas cantigas festivas que aprenderam a cantar.

A música “Assum Preto”, cuja letra é de Humberto Teixeira, foi imortalizada pelo genial Luiz Gonzaga, de sorte que é um dos primeiros libelos contra os maus-tratos aos animais. Esse pássaro é o nosso conhecido chico-preto, de canto sofisticado e melodioso. Na canção perpassa o destino cruel dessa ave canora: furavam-lhe os olhos para que ela assim pudesse cantar mais e melhor. Nela é dito que o assum preto cego vivia solto, mas sem poder voar, e que era preferível “Mil vezes a sina de uma gaiola / Desde que o céu, ai, pudesse olhar”. Não só olhar, claro, mas pudesse, livre, leve e solto, voar e planar na dimensão azul e quase infinita do céu; e pousar nas palmeiras e nas frondosas copas das grandes árvores, comendo livremente as frutas e sementes que mais lhe apetecessem.

Foi ao ouvir um comentário televisivo sobre a crueldade de se engaiolar pássaros, que minha mulher me contou a história comovente que lhe narraram a respeito de uma vaca. Obviamente eu conhecia a história de uma macaca, que, ao se defrontar com a espingarda que lhe era apontada, exibiu o filhote que conduzia, não no intuito de salvar a própria vida, como se ele fora um escudo, mas como se dissesse ao caçador: “Tenha piedade desse indefeso inocente, que mal começa a viver… Se você me matar, quem irá cuidar dele?” Consta que o caçador abandonou para sempre essa atividade.

Sempre achei que alguns animais, ao menos os que interagem com o homem, têm alguma espécie de raciocínio e inteligência, não digo sequer inferiores, mas talvez apenas diferentes dos nossos, que fazemos tantas loucuras e maldades e nos classificamos como inteligentes e racionais. Para que loucura e maldade maior do que as guerras étnicas ou religiosas? Que deus aprovaria uma guerra por sua causa ou por causa de uma simples cor de pele?

Pois Fátima me repassou, com viva emoção na voz embargada, a seguinte história: Havia um homem, parente de sua amiga, cuja profissão era matar gado bovino. Era um verdadeiro carrasco de bois. Às vezes enfileirava várias reses, e as ia matando uma a uma, uma vendo a antecedente ser abatida. Abro aqui rápido parêntese: às vezes sinto boiar nos olhos desses animais a névoa de uma profunda e resignada tristeza.

Também tenho conhecimento de que quando algum boi morre, os outras, na hora da melancolia crepuscular, se aproximam do local, e emitem plangentes mugidos, como se estivessem a prantear, saudosos, o companheiro morto, como se lhe prestassem uma homenagem póstuma, como nós humanos fazemos através de necrológios e panegíricos, e do cantochão das “excelências”, às vezes até fingidas e pagas, como no caso das lamentações das carpideiras. Já ouvi até falar de casos em que a boiada presta sentida homenagem, com os seus tristes mugidos, a um fazendeiro ou vaqueiro morto, desde que lhes tivessem estima e amizade.

Numa das vezes em que o nosso “el matador” bovino cumpria o seu macabro e triste mister, uma vaca se aproximou dele e dobrou os joelhos dianteiros, como se estivesse, ajoelhada, a lhe pedir clemência ou perdão por uma culpa que não tinha em sua natural   inocência. Levantou a cara para ele, e o carrasco pôde ver então o que jamais imaginara poder contemplar: do rosto da vaca escorriam lágrimas profusas.

O homem, comovido e cheio de remorso, não cumpriu pela primeira vez o seu dever profissional. E jurou a si mesmo que, daquele momento em diante, jamais mataria outra rês. Conseguiu outro emprego, e cumpriu fielmente o seu juramento.

Ativista do movimento negro em Parnaíba participa de evento nacional na Paraíba.

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O educador, escritor e ativista do movimento negro Marciano Gualberto Andrade Nascimento Júnior, teve seu trabalho científico intitulado “Asés da Justiça: Contra genocidas de nossos terreiros e descentralização do opressor”, aceito na XI Semana Nacional de História, que será realizada de 27 a 30 de agosto na Universidade Federal de Campina Grande em Cajazeiras, Paraíba.

Este trabalho trata sobre a intolerância com as religiões de matrizes africadas. O evento contará com a presença de grandes nomes da História como a professora e doutora Mary Del Priori e professor doutor Daniel Aarão Reis. O evento é patrocinado e divulgado pela ANPUH, Associação Brasileira de Historiadores.

O estudante do curso de História da Faculdade Internacional do Delta em Parnaíba teve seu trabalho aceito pela terceira vez consecutiva e vai defender a produção intelectual para ser publicada nos anais do evento nacional.

 

 

A múmia que dormiu na casa de Simplício Dias na Parnaíba.

* Pádua Marques.

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Já era boca da noite quando o escravo Elias entrou pela porta dos fundos da casa de Simplício Dias naquele sábado de julho de 1824 pra avisar sem mais tardança que o capitão de um navio francês insistia em falar com o governador da Parnaíba sobre a chegada de uma encomenda que por certo haveria de interessar, uma múmia egípcia.

Simplício naquele momento ao saber da chegada de Elias com noticia de que havia coisa grave ocorrendo no cais, tratou logo de chamar o negro a um canto. O navio francês, Le Prince de Bourbon, comandado por Emile Bornett, vindo do Egito e com escala no Marrocos, havia aportado em Tutoia a caminho de São Luiz e pedia permissão pra entregar uma encomenda ao coronel Simplício Dias da Silva.

E a encomenda, dada o valor e sendo coisa de chamar atenção, não poderia ser desembarcada em plena luz do dia. Simplício mandou o negro de volta com a ordem de que o desembarque da múmia seria pela madrugada antes da mudança de maré e com pouca gente por perto. Deu ordens a Elias de que reunisse logo uns quatro homens de sua confiança pra aquela faina. Havia comprado através de um negociante grego no Cairo aquela que seria a joia da sua loja, a múmia de uma criança, com o que pretendia abrir uma casa com mercadorias do Oriente na Parnaíba.

Pela madrugada os negros chegaram sem fazer barulho e tendo Elias como guia e encarregado do serviço foram depois no rumo do Porto Salgado pra desembarcar a múmia e guardar no prédio da esquina. Deu tudo certo. A madrugada com pouco movimento no cais e o silêncio do outro lado da Ilha de Santa Isabel fizeram com que dentro de pouco menos de meia hora aquela que seria a peça mais valiosa da loja de antiguidades estivesse guardada no armazém.

Simplício, tamanha a curiosidade pelo objeto comprado do Egito, mal dormiu naquela noite e na madrugada. Dia nascido, bem a criadagem de pé e mandou Elias abrir o armazém na parte de baixo do prédio da esquina. Queria ver com aqueles olhos que um dia a terra haveria de comer, uma peça da história da humanidade e que só ele e seu dinheiro podiam comprar.

Seria admirado e temido por toda a região, em São Luiz, Recife, Rio de Janeiro. Finalmente se vingava da ingratidão de dom Pedro I por não ter aceitado seu presente, para as filhas, as princesas Januária, Paula e Francisca, um cacho de bananas feito de ouro maciço e com pedras de rubi nas pontas! Se vingava por estar sendo agora perseguido e sendo acusado de tramar a queda do Império. Os dias, cinco de uma semana, foram passando e a loja da esquina sempre fechada começou a chamar a atenção.

Certa noite, já entrando em agosto, Elias foi na ponta do pé ver como estava a carga, uma peça belíssima de madeira e ornada com cenas de batalha. Foi ver, mas sem o direito de chegar perto e de tocar. Tinha o tamanho de menos de uma braça. Viu a peça e do jeito que entrou calado e se pelando de medo, foi saindo. Apenas Simplício e ele sabiam do que se tratava. Quando saiu na porta do armazém na esquinada da rua Grande, por volta de umas duas horas, achou de tanger um cachorro que dormia enrodilhado. O bicho nem se mexeu. Pegou um pau e fustigou de novo. Nem a pau. Nesse momento lá embaixo no cais uma sineta tocou duas vezes. Com aquele sinal Elias se arrepiou dos pés à cabeça.

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Saiu olhando pra os lados em direção dos fundos e foi se aquietar. Mais daqui a pouco haveria de já estar de pé antes que Simplício acordasse. Era lei e ele tinha que cumprir. Mas quando na volta passou pelo cachorro viu que estava morto. Tratou de tirar aquela coisa dali antes de amanhecer. Lá pelo meio do dia foi chamado pelo capitão do porto, Sebastião de Seixas. Dois negros que haviam levado nas costas a encomenda pra o governador Simplício Dias da Silva naquela madrugada, estavam mortos.

Morreram escumando pela boca e se coçando sem que nada desse jeito. Não tinha sido nada de briga entre eles ou coisa de comer. E assim começaram a aparecer e acontecer outras coisas dignas de se meter na cabeça de que aquela múmia trazia coisa ruim pra dentro de casa. Simplício começou a ficar encasquetado com tanta coisa acontecendo dentro de sua casa.

Aquele cachorro, agora dois negros da estiva mortos sem causa, uma sua sobrinha caiu da escada e quebrou as costelas, o armazém ficou de uma hora pra outra infestado de ratos e de morcegos. Sem dar ciência à família e aos amigos, ao chefe de polícia, noutra madrugada Simplício Dias da Silva mandou que pegassem aquele troço e jogassem ou queimassem bem longe. Mas com medo de se repetir com ele o ocorrido com os negros estivadores, Elias acabou foi jogando no barranco do Porto Salgado no lado contrário a alfândega.

*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras.

 

Coleção Florianenses nº 8: um belo e festivo lançamento

Coleção Florianenses nº 8: um belo e festivo lançamento

Elmar Carvalho

Sábado passado, seis de julho, por volta de uma da tarde, em companhia de meu irmão Antônio José, segui com destino a Floriano, para participar da solenidade de lançamento do anuário, na verdade um livro de mais de 370 páginas, denominado Coleção Florianenses (volume 8), todo em papel couchê, com inúmeras fotografias, organizado por Cristóvão Augusto Soares de Araújo Costa, Rosenilta Maria de Carvalho Attem e Teodoro Ferreira Sobral Neto. Os grandes homenageados da edição foram uma centenária carnaubeira, tombada em 2018, vítima de um impiedoso vendaval, e o saudoso professor Luiz Paulo de Oliveira Lopes, que fora um dos mais entusiasmados membros da Fundação Floriano Clube.

Atendia convite do amigo Cristóvão, um dos seus organizadores e membro da Fundação, que o editara. Iria lhe entregar o Diploma e a Medalha do Centenário da Academia Piauiense de Letras, como representante do presidente Nelson Nery Costa. Tenho a honra de ser o autor da proposta de concessão da honraria, que lhe foi outorgada a unanimidade pelos membros da Assembleia. Cristóvão, após a morte do jornalista e escritor Deoclécio Dantas, tornou-se o presidente vitalício do Sinédrio do Riverside, roda de conversa de que faço parte, na verdade um conselho consultivo e deliberativo de assuntos aleatórios e outros mais.

Do Hotel Maktub, em que nos hospedamos, fomos a pé, eu e meu irmão, conhecer o local do evento, e fazer um lanche. Perguntei a uma jovem que passava onde ficava a sede da fundação e a lanchonete mais perto. Ela indicou a rua e a direção, que por sinal ficava perto de onde estávamos. Acrescentou que estava indo para a lanchonete, e que poderíamos acompanhá-la.

Ao saber de minha missão, disse que era nora do senhor José Bruno dos Santos e filha de dona Maria Amélia, que no dia seguinte lançaria um livro e tomaria posse de uma cadeira na Academia de Letras e Belas-Artes de Floriano e Vale do Parnaíba, de que fazemos parte eu e seu sogro, sendo este o seu presidente. Como eu estivesse defronte a um velho e imenso sobrado, perguntei se acaso ele pertencera aos ancestrais do meu amigo José Demes, funcionário do Banco do Brasil, compositor e instrumentista, tendo ela respondido afirmativamente.

Conheço Bruno dos Santos há muitos anos e tenho conhecimento de suas lutas e biografia. Fez parte do MDB histórico, e ouvi alguns de seus pronunciamentos pelo rádio, em minha meninice, no horário eleitoral, no final dos anos 60, começo dos 70. Diz-se jocosamente que os emedebistas históricos do Piauí cabiam num fusca. Eram eles Josípio Lustosa, Celso Barros Coelho, padre Solon Aragão, Manoel Veloso, João Mendes Nepomuceno, Manoel Nogueira Lima Filho, Severo Maria Eulálio, Filadelfo Freire de Castro, Bruno dos Santos, como dito, e outros que não me acodem à memória de imediato.

Bruno foi deputado estadual e prefeito de Floriano. Quando foi diretor da Comepi, fez duas obras da mais alta importância cultural: criou o Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado (dentro do qual, como presidente da UBE-PI, consegui uma página cultural denominada “Textos e Pretextos”) e publicou duas notáveis obras do poeta popular Hermes Vieira, que entrevistei, com Domingos Bezerra, para a revista Cadernos de Teresina, da qual fui editor. Já conhecia o grande poeta através do Almanaque da Parnaíba, e dele guardei os versos de um poema sobre o lobisomem, que cito de memória (e, portanto, sem exatidão): “A feiura nele é tanta / Que até mesmo ele se espanta / de se ver tão feio assim”.

Saindo da rápida digressão, em que presto singela homenagem a José Bruno dos Santos, volto a falar da solenidade de lançamento da Coleção Florianenses, na qual ele se encontrava presente. Fui recepcionado por Cristóvão Augusto, que já se encontrava autografando exemplares do anuário. Ele me mostrou detalhes do velho Floriano Clube, e me levou para ver umas excelentes maquetes, que são a memória fiel e em miniatura de antigos prédios da cidade, alguns já demolidos. Pedi-lhe que retornasse à sessão de autógrafos. Encontrei uma pessoa, que disse se chamar Antônio Carlos Torres, que é uma memória viva de Floriano. Disse possuir todos os números da Coleção, e ter comparecido a todos os lançamentos. Prestou-me informações sobre todos os painéis estampados nas paredes da sede da Fundação, que contam muito da história cultural da cidade, sobretudo da área musical, com seus grandes instrumentista e conjuntos.

Compunham a mesa de honra altas autoridades do estado e da cidade, entre as quais o prefeito Joel Rodrigues, o bispo emérito Dom Augusto Rocha, o presidente da Fundação Floriano Clube, Teodoro Sobral Neto, e o ex-deputado federal B. Sá. Após fazer a entrega do diploma e da medalha outorgados pela APL ao amigo Cristóvão Augusto, fiz conciso discurso, em que enalteci as suas qualidades pessoais e o seu trabalho e o de seus companheiros em prol da memória histórica e cultural de Floriano, além de comentar a coletânea biográfica que estava sendo entregue ao público ledor. Enfatizei que algumas de suas peças biográficas poderiam ser consideradas verdadeiros ensaios, como a produzida por Alcebíades Costa Filho, ilustre historiador e meu velho conhecido, sobre seu pai, que despontava como um notável líder operário, quando o seu trágico assassinato lhe interrompeu a carreira, cujos augúrios a anunciavam como auspiciosa.

Parte do que disse foi uma espécie de resumo do que escrevi para a contracapa do volume 5 da Coleção, que segue abaixo, na íntegra:

“A Coleção Florianenses, já em seu quinto número, editada pela Fundação Floriano Clube e sendo sua organização capitaneada por Cristóvão Augusto Soares de Araújo Costa, pode ser considerada um misto de revista, anuário e almanaque, pela diversidade de autores e matérias, algumas pequenas, outras com características de verdadeiros ensaios biográficos. Versam diferentes temáticas, mas todas relacionadas a Floriano. Quase todos os textos são ricamente ilustrados por fotografias, que os documentam, tomando, algumas vezes, o status de ensaio ou reportagem fotográfica. Neste número (cito apenas como exemplo), há uma sequência delas sobre velhos carnavais e folguedos juninos, que nos fornecem a nítida imagem de costumes e sociabilidades de outrora, quase sempre singelos e mesmo ingênuos.

Os perfis biográficos, alguns longos e profundos, em que o caráter e o ideário do biografado são fixados, retratam não só florianenses ilustres, mas também notáveis piauienses e brasileiros, que lhe prestaram bons e inestimáveis serviços, como o barrense Raimundo Artur de Vasconcelos, signatário da lei que elevou a povoação à categoria de cidade. Entretanto, não apenas as figuras proeminentes da história oficial são objetos desses estudos, mas também pessoas humildes, que fizeram ou fazem parte da paisagem humana da comunidade; nessa seara figuram profissionais liberais, mestres dos mais diversos ofícios, artesãos, artistas, poetas e intelectuais, além daqueles que se celebrizaram como figuras ditas folclóricas, pelos episódios engraçados, jocosos de que foram protagonistas, mercê de sua verve ou de seu espírito brincalhão.

A coletânea, logo em suas páginas iniciais, registra as “Curiosidades Florianenses”, tanto através de textos, como de anúncios publicitários e “santinhos”, todos fac-similados, para que o leitor possa ter noção de uma época sem internet, sem redes sociais, em que o tempo parecia escoar com maior lentidão. Nas páginas finais, sob o título de “Verdades, boatos e mentiras contadas na barbearia do Zé Venâncio e no bar do Sinhozinho”, foram relatados os “causos” e as façanhas pitorescas e hilárias de pescadores, caçadores, boêmios, cachaceiros e outros mentirosos e fanfarrões, todos integrantes e enriquecedores da mais legítima fauna folclórica florianense.

Na capa de todas as edições aparece, de forma emblemática e simbólica, a porta principal do Estabelecimento Rural São Pedro de Alcântara, que originou Floriano. Pode-se dizer que ela é o portal por onde entrou, fulgurante em sua glória, a Princesa do Sul. É o seu pórtico inaugural e o seu Arco do Triunfo.”

Os biografados na Coletânea, foram ainda homenageados através de banners e de slides, projetados por data show, além de que suas qualidades e feitos foram sintetizados pelos apresentadores da solenidade. Não bastasse isso, a família de cada um deles teve um representante, que discorreu sobre os fatos marcantes de sua vida, de sorte que a história, a sociologia e os costumes de Floriano foram enaltecidos por diferentes pessoas e familiares. Todos se referiram ao extraordinário serviço prestado pela Fundação Floriano Clube em prol da preservação da memória florianense, sobretudo à Coleção Florianenses, graças à dedicação e esforço de seus organizadores, Cristóvão Augusto Soares de Araújo Costa, Teodoro Sobral Neto e Rosenilta Maria de Carvalho Attem.

Nesse ponto, não posso deixar de lembrar o poeta Antônio Veras de Holanda, que clamou em versos aos poetas do porvir: “Lembrai-vos de mim. / Afastai do meu túmulo o anonimato da morte.” Esses versos, literalmente lapidares, estão inscritos na lápide de sua sepultura, em cemitério florianense. A Coleção Florianenses, cumprindo esse testamento literário do saudoso vate, estampou a sua biografia no seu volume nº 5, assim como vem retirando do esquecimento outras ilustres personalidades, que já não eram lembradas ou que não eram conhecidas pela geração atual.

Foi uma esplêndida festa cultural e literária. Em Cadernos de Lanzarote li, em alguma parte, que Saramago já se dava por satisfeito quando a um evento literário compareciam, salvo engano, mais de setenta pessoas. Pois na festa de lançamento do nosso anuário foram contadas 365 pessoas, fora outras que escaparam à contagem ou que chegaram depois, de modo que se acredita que compareceram em torno de quatrocentas. Importa dizer que foram vendidos inúmeros exemplares, o que não acontece no Piauí e nem mesmo do Brasil.

Foi, repito, uma esplêndida festa cultural.

A moeda pra Nossa Senhora da Graça.

 

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*Por Pádua Marques.

 

Simplício Dias estava pedindo pressa naquelas obras da alfândega da Parnaíba, já autorizada pelo rei dom João VI há dois anos. Ele descia de casa no rumo do cais do Porto Salgado, acompanhado do escravo Elias. Andava entusiasmado com o movimento no porto e naquela manhã saía pra ver de perto o serviço na nova repartição. Não era lá de deixar o sobrado e a companhia de dona Isabel Tomásia, sua mulher, dos filhos e dos criados.

Não era de gostar e nem poder mais andar pelo meio da rua na Parnaíba. Já temia pela vida e evitava o de sempre, alguém pedindo isso ou aquilo, um adjutório pra um filho estudar em São Luiz ou no Recife, um batizado ou casamento, uma vaga no serviço de sua casa ou das repartições do governo, essas coisas. Mas naquela manhã achou de sair depois do café e seguiu pela rua até o cais. Lá estavam os barcos e canoas, vindos de Tutoia no Maranhão, e de Ilha Grande de Santa Isabel, desembarcando tudo em quanto era tipo de mercadoria.

E naquele sobe e desce de gente, de negros e embarcadiços nus da cintura pra cima dando no meio da canela, aos gritos, o cheiro forte de aguardente, suor, farinha e de sacos úmidos de maresia, Simplício ia se aproximando do cais e o movimento ia crescendo. Ao verem aquele homem tão importante e tido como poderoso aquela gente ia abrindo caminho e os de mais posses e projeção tirando os chapéus naquela reverência costumeira.

Elias era um negro baixo, de pouca graça, os caroços dos olhos amarelados, como quem teve dordolhos, com pouco mais de quarenta anos. Foi presente de um compadre de São Luiz, no Maranhão. Tinha só um braço e caxingava da perna direita. Contava que aquele aleijão foi coisa de uma briga com um paraense por causa de serviço no cais. Andava a pouco menos de dois passos de Simplício sempre que o patrão saía à rua. Por dentro da calça de algodão ordinário, uma enorme faca. Mas que ninguém lhe imaginasse sem um braço não ter destreza.

Simplício ia sendo cumprimentado aqui e ali mais na frente cumprimentando um capitão de navio, um dono de carga de algodão, oficiais da Marinha e gente mais de feição e bem vestida, vinda de São Luiz e até da França entre os embarcadiços. Mas no meio daquele mundo de gente não andavam mulheres. A rua e o cais eram de homens e para os homens.

Simplício e Elias estavam quase chegando à esquina do porto, pra direita, em direção à alfândega quando de longe um negro se abaixou pra pegar alguma coisa no chão. Olhou pra um lado e pra o outro e foi logo colocando a moeda no bolso. Mal deu tempo da moeda esquentar na mão calosa. O coronel da vila da Parnaíba viu e apressou o passo. Antes que o negro se perdesse no meio dos outros estava perguntando quem era e quem era seu dono.

Sem resposta de imediato e tomado pelo susto o negro ficou arquejando de medo. Achou ou roubou aquele dinheiro? Achado não era roubado, calculou responder. Mas se limitou a dizer que quando era achado por um cativo e esse cativo não tinha dono, o achado era de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo. E Deus estava na igreja e a igreja estava lá no alto e era do senhor Simplício Dias da Silva, por merecimento governador da Parnaíba!

Disse daquele jeito submisso de quem pedia amparo. Logo, aquela moeda era do coronel. Tremendo feito uma vara de pé de sabiá verde, o negro baixou a cabeça e foi logo entregando o achado pra Simplício Dias, que no tempo de um piscar de olho colocou a moeda no bolso da calça.

Elias ao ver o rosto de seu dono coberto de suor foi logo pegando um lenço de algodão meio encardido e o enxugou. Era sua função além da segurança pessoal ser serviçal de cuidados extremados. Simplício ainda olhou pra um e pra outro como que mandando que concordassem com sua medida e foi saindo devagar em direção às obras da alfândega naquele final de novembro.

O negro estivador, que até bem pouco tempo estava achando que tinha sorte demais na vida com a moeda, foi saindo e se perdendo no meio dos outros. Simplício agora estava dando ordens no meio dos operários na obra da alfândega. Um pouco longe do cheiro de sacos de algodão, de fumo e carne seca naquele cais cheio de mercadorias empilhadas pra embarque. Meteu a mão no bolso e se sentiu satisfeito. Olhou pra Elias e deu um resmungo curto.

Pra que negro com dinheiro? Pra gastar com mulher da vida e com aguardente, fumo pra mascar e depois sair caçando confusão até ser preso e levar surra amarrado em tronco? Deixasse aquela moeda em quem sabia e conhecia valor de dinheiro! Negro não sabia valor de dinheiro! Negro não sabia nem rezar um Pai e Nosso e queria ficar com dinheiro? Dinheiro era da santa, Nossa Senhora da Graça. Lá no cofre estava seguro.

*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras.

ZEFERINO E A MATEMÁTICA MODERNA

ZEFERINO E A MATEMÁTICA MODERNA

Elmar Carvalho

No meu périplo campomaiorense, por ocasião da inauguração do Memorial e da sede da Academia Campomaiorense de Artes e Letras revi o Zeferino Alves Neto, um guerrilheiro da cultura e agora blogueiro. Foi meu professor de matemática, creio que em 1969, no meu primeiro ano do antigo curso ginasial, no único ano em que estudei no Colégio Santo Antônio, de que foram fundadores, entre outros, os velhos mestres padre Mateus, professor Raimundinho Andrade e o juiz Hilson Bona.

A seguir, estudei o segundo ano ginasial na cidade de José de Freitas, da qual guardo ótimas lembranças. Fiz o terceiro e o quarto ano, de volta a Campo Maior, no Colégio Estadual, que hoje, com muita justiça, tem o nome do professor Raimundinho Andrade.

Devo dizer que Zeferino, o ZAN, foi o único professor de matemática de que não tive medo, e observo que foi através de suas aulas o meu primeiro contato com a então chamada Matemática Moderna, cheia de sinais gráficos, desenhos geométricos e noções de conjunto, e outros artefatos pavorosos.

Sempre tive terror dessa matéria, e por isso escrevi em versos:  A matemática / me enlouquece: / por isto meu pensamento / salta de mais infinito / a menos infinito (…).   Alguns professores dessa disciplina aparentam ter certa inclinação para o sadismo, e parecem se comprazer com o medo que infringem aos discípulos. ZAN sempre foi um humanista, um guerreiro do bem, e não torturava seus alunos com ameaças e perspectivas de reprovação.

Como em 1975 deixei definitivamente Campo Maior, com minha ida para Parnaíba e depois Teresina, por décadas o perdi de vista. No começo dos anos 2000, quando lancei meu livro Rosa dos Ventos Gerais em Brasília, voltei a vê-lo, uma vez que ele foi a essa solenidade cultural. Depois, consegui rastreá-lo através dos mares internéticos.

Com o seu retorno a nossa cidade natal, tenho-o visto mais amiúde. Conversamos algumas vezes. Em seus comentários em blogs e sites, nota-se o seu apurado senso de humor e a sua preocupação com a cultura e o bom andamento da administração pública. Além de escritor, radialista, jornalista, blogueiro, é eminentemente um homem de teatro, tanto como teatrólogo, como também na qualidade de ator e diretor.

Embora a sua veia humorística esteja sempre afiada e armada, noto-lhe a preocupação constante em não ferir as pessoas, mas apenas em divertir-se e diverti-las. Portanto, o caríssimo ZAN sempre será Zeferino, mas jamais Zé Ferino, para fazer um trocadilho cretino, e continuar no meu rimar genuíno, sem perder o tom e o tino.

17 de março de 2010

A batalha das cocadas na frente da casa-grande.

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*Pádua Marques.

A miséria estava batendo agora na porta da frente de casa da família de Simplício Dias da Silva desde quando o imperador dom Pedro I lhe virou as costas por causa de seu envolvimento e obediência cega ao juiz de fora João Cândido de Deus e Silva e gente do Pernambuco e do Ceará, que agora queriam uma república pra o Brasil.

O antes senhor da Parnaíba, que recebia nobres, estudiosos, comerciantes interesseiros e até piratas na sua casa, amargava o desprezo político e a pobreza, a ponto de sua mulher, dona Isabel Thomásia ter arranjado um negro pra vender cocadas na porta de casa.

A cozinheira, tão logo passava a hora do almoço, se punha a fazer as cocadas pra que tão logo amanhecesse o dia vinha o negro da casa, Pano Véi, lá de dentro com o tabuleiro forrado com um pano de sacos pra esquina da rua Grande, esperar a freguesia de embarcadiços, soldados, gente de repartições públicas e quem descia ou subia nas canoas indo pra Tutoia no Maranhão. Isso de domingo a domingo. Vez por outra dona Isabel e o marido, agora doente, ficavam na janela de cima olhando o movimento embaixo.

Por volta das nove horas, já o sol queimando o lombo dos negros que trabalhavam no porto lá embaixo, Pano Véi já estava em serviço fazia tempo. Olha a cocada! Olha a cocada! E nesse sentido só desmontava aquele negócio quando já não tinha nenhuma cocada e o que sobrava era algum farelo. Corria pra dentro da casa-grande e ia prestar contas com a dona do negócio. Quando muito, recebia um tostão, que logo iria ser gasto lá embaixo no cais com um mercado de cachaça ou de fumo.

No outro lado da rua a família Miranda Osório era um tormento pra o antes todo poderoso e destemido Simplício Dias da Silva. Desde o assassinato de Raimundo em 1812 e a recusa de Simplício em ser governador do Piauí, as coisas andavam de mal a pior pra família. Dívidas, traições e tudo o mais se acumulavam naquela casa de paredes encardidas. Na igreja nem ia mais por causa da inchação nas pernas e sentindo uma dureza no pé da barriga. E agora mais aquela, de até na venda de cocadas da mulher encontrar um concorrente, o negro Mão de Pilão.

Tanto um quanto outro eram negros ainda novos beirando quando muito, os trinta anos. Mão de Pilão talvez fosse até mais velho. Mas quem era que iria se preocupar com idade de cativo? Talvez pra criar sua empresa que lhe garantisse um tostão pra aguardente, arranjou com seu dono um ponto pra venda de frutas na frente de casa de Miranda Osório. E em pouco tempo já vendia muita manga, bananas, limões doces, melancias, abacates, fumo de mascar e rapé, doce de leite e cocadas.

Pano Véi estava começando a ficar com raiva daquele negócio. Trabalhava que nem um burro botando água pra o senhor tomar banho, limpava a igreja, a frente da casa, o quintal, cortava um galho de árvore, fazia uma limpeza nos cemitérios da família, enchia os potes da cozinha e ainda de manhãzinha tinha que torrar a cabeça naquele terror de sol vendendo cocada pra dona Isabel na esquina!

Se quebrasse alguma cocada e tendo que voltar pra dentro do tabuleiro ou algum freguês não pagasse, era castigo na certa.  Era vida de cão aquela sua! Agora me vinha Mão de Pilão, com tabuleiro de frente com mais coisas pra vender e lhe tirando freguesia! Ia fazer um bonito com aquele negro.

Mão de Pilão ficava de lá olhando o movimento e falando alto toda a lista do que vendia. Olha o limão doce! Olha a manga, olha a manga! Olha a cocada de coco fresco! Aqui tem rapé e tem fumo! Três tostões, três tostões e é pra acabar!  Os fregueses iam e vinham. Passavam e acabavam comprando isso ou aquilo. O negro suado e satisfeito ia colocando num caixa de madeira o apurado e cantando uma canção alegre, aprendida com as mulheres da vida lá embaixo no cais do porto.

Pano Véi esperou dar mais movimento na rua Grande, justo quando acabava de atracar no cais do Porto Salgado uma canoa vinda da Tutoia, no Maranhão, carregada de lenha. Era carga pra casa de Simplício e outros principais da Parnaíba. Havia vendido pouco sua a cocada naquela quinta-feira. Enquanto isso Mão de Pilão, de lá, aproveitava quem estava subindo o barranco e gritava ainda mais alto, intimando, fazendo troça com ele.

O negro enjeitado da casa de Simplício Dias foi se aproximando do tabuleiro de Mão de Pilão com as duas mãos cheias de areia. Esperou um freguês pagar e ir se retirando com umas frutas. Jogou areia por cima como se fosse chuva. A areia caiu direitinho em cima das cocadas de Mão de Pilão.

O nome feio comeu. Filho dessa, filho daquela. Acabaram se atracando. Foram ao chão e as vaias acompanharam. Foi cangapé pra todo lado e pra cima dos tabuleiros. As frutas, o rapé e o fumo em frente da casa de Miranda Osório, enfim, tudo que tinha no tabuleiro de Mão de Pilão se espalhou. Reboliço dos diabos.

Foi o bastante pra aparecer gente de tudo quanto era lado vinda da frente da matriz, do cais e de tudo mais. Por sorte não puxaram facas. Veio milícia e prendeu os dois negros arruaceiros. Sabendo de quem eram, foram cada um levados aos seus donos. Simplício ficou sabendo do ocorrido logo depois da dormida do almoço. Pano Véi levou uma pisa de umbigo de boi e teve a comissão do dia confiscada. Simplício Dias da Silva, mesmo já sem saúde, não queria ninguém com valentia e autoridade maior que a dele na Parnaíba. E muito menos partindo de negros!

* Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras.