Por Alexandre César Mendes.
‘’A morte, enquanto funcionária pública é lenta. Precisa contratar incompetência, desprezo e ganância como estagiários para que a repartição possa prestar contas nos anais da existência. Órgão de ordem superior que basicamente vive da inflação de sentimentos e da taxa de manutenção de karma no reembarque.
Lidar com alma é negócio sério. Por isso o marketing da guerra deve ser sucinto e letal na hora de seduzir almirantes, viciados em crack e, claro, o cliente ideal, o cidadão de bem. Uma guerra não se faz sem escovas de dente e feijão enlatado. Mentiras devem soar limpas, sem distinção de boca. Já a esperança, deve se conter em latas para prorrogar os lucros…”.
Última página do diário de um desconhecido.
Inúmeras vezes um espírito indomável olha com nossos olhos de dentro de nós: quando nos apaixonamos, quando o ódio é maior que o corpo e insuportável como amar eternamente, mesmo que seja o travesseiro vazio na cama de casal.
Algumas vezes, um tanto mais raras nos tempos em que existo, acontecem como um disparo semiautomático de algum triste encantamento humano quando observo um corpo infantil quente de brasas – mais imóvel que o próprio asfalto.
Não consigo explicar o que é ter pena. Abuso ao palpitar que há alguma beleza em uma cena dessas, mas não há olhos que queiram ver. O tempo de carinho não é como o de guerra. O manual do toque, apesar dos tântricos, permanece indecifrável.
Quanto aos conflitos, tão eternos, tão imensos quanto à alma pode chegar a atingir, são metódicos como a chegada da senilidade, que é antibiótico da mente para sarar da vida. A senilidade pode caber em uma fresta de porta de asilo, quase sempre destrancada, para que a morte não nos precise bater a cara ao sair.
Não há pelos no peito que suportem a vigor essa batida. Não existe batom que encene beleza para a convidada, mas não me farei extenso nesse encontro que sempre chega ao escritor e ao leitor mais desatento. Minha tórrida mensagem é no limbo que existe entre querer viver nos braços do pavor e cair no abraço da morte. Uma guerra não se faz sem saquear e atear fogo, técnica modernizada e lapidada e que só é assim descrita por desembargo histórico.
Uma guerra nunca se faz sem últimos beijos, ainda que não sabidos de serem e chagas retorcidas no peito e na cervical por lembrança ou granada que seja a causa mortis.
Sem filhos aturdidos na busca dos pais não se faz guerra. É absolutamente imprescindível que as baratas não atuem sozinhas no caos. Éramos tantos e não nos havia acometido em momento algum a seriedade da nossa revolta, muito embora bradasse-lhe-mos como um urro que facilmente fingia acolhimento.
Aquele calor humano que trafegava por entre a multidão era mais labirinto que uma marcha (baratas marchando em um labirinto). A guerra exige a paz do sono eterno como ceia e o moço como aperitivo; e essa fome era maior que todas as reivindicações na avenida decretando sua homogeneidade em todas as vozes.
A guerra não se faz sem ter amigo para honrar ou trair; e no fim somos todos, pétalas ao chão, quando o apaixonado por fim amadurece e deixa o jardim. Uma guerra não se faz sem antes tentar fugir. Como o frango que estorce o pescoço no punho de minha avó enquanto assisto, ainda menino, na espera do almoço.
Torço pela morte desde cedo. Torço contra mim mesmo, é verdade, mas reentrâncias da infância ainda são o alívio para mocidade que bebe nostálgica nos becos de qualquer bairro e mercado confabulando sonhos e sexo antes da convocação. O bruto da guerra sempre foi o pós e nunca o recrutamento. Não há balança que pese adeus e despedida, pois à medida de reencontros, a esperança se aviva, mas nunca se mexe no túmulo.
Não se faz guerra sem pelotão, sem bandeira de justiça qualquer que vire pano de chão na rua tentando limpar a decepção que sempre vaza da cara e retorna a ser bandeira de novo. No momento nada me atinge com mais força. Nem as pauladas, nem meus amigos gritando junto à imensidão que se aglomera, nem à morte vencedora que abateu o frango (e, mais tarde, a cozinheira) tem a força da virada…
O momento derradeiro em que o ponto de vista muda e silencia-nos, até que bate a pior das certezas… Uma guerra não se faz sem o desejo de redenção…
Não buscava redenção pela escolha que tomara. Nem por imaginar lesões mais brandas do que são realmente. Sejam de que naturezas forem. Como nos filmes, sempre me pareceram amenas quando seguidas das cenas de recuperação. Mas uma criança morreu ao sofrer queimaduras principalmente no rosto durante os protestos e não haveria mais cena alguma. A não ser aquele flash back insano.
Culparam os black blocks e os manifestantes como eu. Mas eu sabia que o que fez ele se retorcer até a chegada dos bombeiros e longe dos cuidados e âmagos da mãe foi algum desejo de guerra. Uma sede sem a glória de um copo de uísque quando somos abandonados e nele encontramos conforto… Era culpa, culpa. O que me alarma, me questiono: “o que dar de beber para aquela mulher embebida naquele espírito que desgrenhava a carne de sua realidade no asfalto?”…
Crônica de jornal inspirada no trecho de um diário de autor desconhecido, perante as manifestações de 2013.
Alexandre César Mendes é poeta, cineasta e cronista. Integrante do Grupo Versania.