Chico Acoram e a mosca azul

mosca-azul-2

Chico Acoram e a mosca azul

Elmar Carvalho

Segunda-feira, velório de meu pai, falecido no domingo, dia 5, às seis horas da tarde. Além de parentes, colegas e amigos, marcaram presença alguns intelectuais de minha estima. Já perto de uma hora da tarde, quando o féretro seria levado para Campo Maior, onde seria celebrada a missa de corpo presente e procedido o sepultamento, na mesma sepultura em que repousava minha mãe, eu conversei com o historiador e romancista José Pedro Araújo, o articulista e cronista Chico (Araújo) Acoram e o historiador e escritor Fonseca Neto, sobre assuntos diversos, menos temas fúnebres.

No momento em que os dois primeiros se despediam, eu disse que o Chico Acoram já tinha material suficiente, em quantidade e qualidade, para publicar um livro com suas notáveis crônicas memorialísticas e historiográficas. Disse com toda a sinceridade porque lhe reconheço o valor literário. Mas o Chico, humilde, arredio e infenso a vaidade, me retrucou que ainda não havia sido picado pela mosca azul.

Quando jovem, eu podia perder a amizade, mas não perdia a oportunidade de fazer uma boa piada ou jocosa anedota. Agora, perco a blague, porém não perco o amigo. Mesmo assim, sem medir possíveis consequências, respondi-lhe:

– Mas você, Acoram, jamais será picado pela mosca azul; sabe por que? Porque o amigo é a própria mosca azul.

Apesar das risadas, eu não estava me contrapondo a ele, e nem estava lhe insinuando qualquer vestígio de vaidade. Muito pelo contrário. A mosca azul inocula o pecado da vaidade nos outros, mas ela própria não a tem. E não a tem por não ter consciência de sua beleza ou por tê-la em grau absoluto, de modo que o seu encanto é algo que lhe é natural e indiferente.

Com isso, eu estava a dizer que o nosso bom amigo Chico Acoram não poderia picar-se a si mesmo, e, portanto, jamais seria envenenado pelo vírus da vaidade, como nós outros. Afinal, a mosca azul do poeta, magnífica em sua beleza, contudo sem a vaidade dos homens, não se contamina com o que não tem, mas que, mesmo não tendo, transfere aos homens, talvez porque os humanos só recebem de verdade aquilo para que são propensos.

A humildade de meu amigo Acoram é de fato humilde e discreta; não é da estirpe daquelas que se empavonam pela própria ostentação dos que se autoproclamam humildes.

As mangas estão engordando os porcos no Maranhão.

 

 

Por Pádua Marques, da APAL, cadeira 24.

 acaba1

Dia desses, coisa de uns quinze dias, atravessei a ponte do Jandira e entrei de Maranhão adentro, nessa nesguinha que faz fronteira com a região norte do Piauí tendo como referência a Parnaíba. Fui a São Bernardo. Antes já havia conhecido Araioses e mais antes ainda a Tutoia, terra de meus amigos e confrades Rubem Freitas e Antonio Gallas.

acaba2

A viagem foi aquilo que eu esperava ver a partir da estrada esburacada e que a gente fica em todo o percurso com a alma saindo pela boca morrendo de medo de um acidente. E vem curvas e lombadas e a estrada sem uma gota de sinalização. Sem contar no temor de a qualquer momento ser assaltado por algum motoqueiro, desses que ficam espreitando quem passa.

acaba4

Não sei como é que pode todo que é santo dia esse pessoal dessas cidades do Maranhão estar na Parnaíba fazendo compras no Paraíba, fazendo consultas, trazendo mulher parideira pra hospital, trabalhadores vindo à procura do FGTS, PIS ou Pasep, aposentado correndo pra fazer empréstimo consignado e trafegando numa rodovia naquela situação?! Cidades como Araioses, Santa Quitéria, Tutoia, Agua Doce, Magalhães de Almeida, São Bernardo, de gente tão hospitaleira, mas que nada têm que favoreça se morar nelas.acaba5

Pobres, feias, abandonadas, que lembram muito os bairros Santa Luzia e a Guarita, de gente ordinária e triste, feito cabras dentro de um aprisco apertado. Muitos e muitos saem todos os dias no rumo da Parnaíba e lá pelo meio do dia ou no começo da tarde voltam pra aquele fim de mundo! Como é que vive aquela gente? Qual a autoestima que podem ter? Quem eles podem ter como referências de sucesso? Tudo dessa gente é feito e comprado na Parnaíba. Da caixa de fósforos ao pano pra vestido.

acaba3

E a minha impressão de viagem foi tomando consistência ao ver do carro aquela gente na beira da rodovia, naqueles povoados, as caras de desempregados, famintos, vestidos com roupas encardidas, as meninas tomando tope de moças já com os caroços dos peitos furando a blusa e sem nenhuma vergonha de pedirem dinheiro aos desconhecidos. Uma visão da miséria humana e da falta de sensibilidade de quem pode e deve mudar a sociedade.

Posso dizer que a impressão que tenho e tive do Maranhão sempre foi aquela de uma terra abandonada e com a maioria de sua gente miserável, ignorante, submissa e explorada por políticos sem vergonha nenhuma que se perpetuam dentro das prefeituras e câmaras de vereadores, corrompendo e sendo corrompidos, se revezando, casando e batizando, decidindo quem nasce e quem deve morrer.

araiosesaaraiosesb

E naquela viagem fui observando a mata, as casinhas de taipa dentro de roças. Umas até com antenas parabólicas! Meninos sujos comendo barro detrás de casa. Velhas desdentadas jogando no mato o mijo da noite que ficou nos pinicos e muitos porcos e mangueiras. Porque uma coisa a gente tem de admirar, essa parte do Maranhão tem mangueiras. Mangueiras enormes, centenárias com aquelas copas mais parecendo cabelo de negras. Aí  lembrei de meu pai, filho de Brejo dos Anapurus. Ele dizia que na sua terra tinha uma mangueira que de tão velha deu caju.

Então eu me detive olhando aquela arrumação. Aqueles porcos de tudo quanto era definição e tamanho. Os pretos, os ruivos, outros rajados, uns cinzentos, outros cobertos de lama, uns de rabo fino. Do barrão ao bacurinho. Uns tão pequenos que, se mortos e pelados, mal dariam pra uma família de dez pessoas na hora do almoço. E ali embaixo daquelas mangueiras eles ficam, dormem nessa época de muita manga madura. De vez em quando tem uma briga, se mordem. Depois estão no mesmo chiqueiro.

E é dessa forma, desse mesmo jeito que estou contando, que vivem esses políticos dessa parte do Maranhão, vizinha e dependente de um tudo da Parnaíba. Feito uns porcos debaixo das mangueiras velhas esperando esta ou aquela manga madura ou de vez cair pra ser devorada em questão de minutos.  Brigam aqui, mas se ajuntam mais na frente. Exploram e humilham o povo que lhes dá voto de confiança. Ficam ali engordando e retirando do caroço da manga, que são as prefeituras, até a última gota de sumo.