Da minha infância, hoje distante, eu me lembro das costumeiras trocas de casa de morada e a ansiedade do dia da mudança da nossa família. Mas tem um ponto particular que outro dia, agora já próximo da velhice e sossegado em uma casa própria, pude observar com mais serenidade. Tudo isso ocorreu quando tive a necessidade de, a pedido de um amigo, escrever um artigo sobre a falta de água em Parnaíba. Então me veio limpa e rápida a lembrança do banho da casa para onde a gente iria se mudar.
Mas minha mãe sempre costumou de vez em quando lavar a casa onde estávamos morando. Posso dizer hoje que não era uma situação que a princípio nós crianças gostássemos de fazer e ajudar os irmãos maiores. Mas com o passar do serviço a gente até que no fim daquela faxina estava era querendo que nunca acabasse. E nessa minha memória de infância passada aqui na Parnaíba lembro que quase todo quintal tinha um poço. Poço que garantia o abastecimento de água pra família e a pedido de alguns vizinhos.
Geralmente os poços eram profundos, com uma largura de boca acima de dois metros e outros tantos de fundura. Em muitos deles havia um enorme carretel de madeira e neste carretel um balde e a corda. Essa tarefa de puxar água no poço era coisa de gente grande ou já ficando grande. Menino perto de poço nunca foi coisa de dar certo. E o poço era também lugar de encontros e conversas.
As moças ficavam ali conversando enquanto puxavam água. Ainda hoje existem alguns desses poços aqui em Parnaíba, mas devido as facilidades da água tratada e distribuída, estes poços acabaram sendo, quando muito, lacrados, entupidos ou pelo desuso perderam a utilidade.
Faz agora lembrar um poço que havia no cemitério de São Sebastião, na rua Tabajara. Era considerado um dos mais fundos de que se tinha notícia em Parnaíba. Dava medo chegar à beirada dele e olhar aquele olho bem pequenininho entre as paredes de tijolos cheios de musgo.
E a gente costumava gritar para ouvir o eco. Aquilo nos encantava o mundo da infância. Gritar e gritar bem alto para ouvir seu nome voltar mais alto ainda e por fim ir se perdendo. Servia o poço para que os funcionários regassem as plantas de cima dos túmulos e eventualmente usassem a água nalgum reparo feito por pedreiros próximo ao Dia de Finados.
Mas voltando à lavagem da casa de morada eu lembro que todos, sem exceção, estavam convocados. Geralmente se dava num dia de sábado. O poço que servia de uma das tantas casas que moramos e na qual passamos mais tempo, servia para três famílias. Os nossos vizinhos tinham tanto quanto nossos pais muitos filhos. Portanto na hora de banhar toda aquela multidão de crianças era se ter de marcar e acertar entre as partes. Assim também quando minha mãe e minhas irmãs mais velhas tiravam o dia para a lavagem das redes. No final da manhã o poço estava lá embaixo.
Mas a lavagem da casa era um momento único. Assemelha a preparar um navio para uma grande travessia. Tudo tem de estar pronto e no lugar porque no alto mar não tem como voltar para ver o que se deixou. Meus irmãos maiores eram os encarregados de puxar a água do poço. Era uma faina dura e precisava de braços fortes e muita rapidez. Lá dentro não poderia faltar água.
Papai era o comandante de toda aquela operação. Não vou aqui esmiuçar detalhes de sua atividade. Mamãe ficava como sempre encarregada de manter a cozinha em atividade porque o almoço seria servido logo depois de todo mundo ter encerrado as atividades e dado como pronta a casa lavada e enxuta.
A parte mais dura mesmo ficava entre os intermediários e as crianças. Éramos nós que mantínhamos o ritmo de trabalho. Uns trazendo a água do poço em latas de flandres, conhecidas por latas de querosene. Outros esfregando o chão de tijolos com capembas de coco. E a água vindo do quintal e aquela algazarra toda. Acabava sendo uma grande brincadeira e competição.
Uns querendo passar na frente uns dos outros. E aquela espuma e a água deixavam nossas mãos murchas e dormentes, aquela sensação boa de que não sentíamos onde estávamos tocando. Mas o tempo ia passando e a casa que estava tomando banho, fosse para ser deixada para outro morador ou aquela que iríamos ocupar no outro dia, precisava estar pronta e limpa.
Mas havia um momento de grande apreensão quando tínhamos poço no quintal de casa. A ocasião em que o balde caía lá no fundo. Gasta pelo uso e não podendo mais com o peso da água no balde, a corda rebentava. Era tudo o que precisava para que todos os de casa corressem para beirada do poço.
Mas se por um lado era um momento de grande brincadeira das crianças, era também de grande medo. Havia sempre o risco de, com todo aquele peso na beirada, o poço fechar com muita gente caindo dentro. Os poços não eram como os de hoje, feitos de cimento. Eram as paredes feitas de tijolos.
Aí chegava a turma do resgate do balde. Traziam um gancho de arame. Quando não dava certo arrancavam o armador da rede de dormir, desses que ainda hoje podem ser encontrados nas paredes do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba. Então traziam mais cordas. E toda aquela expectativa gerava às vezes gritos de decepção sempre que uma nova tentativa se mostrava frustrada. Alguém aconselhava que um dos meninos descesse. Iria escalando as paredes bem devagarinho até chegar ao fundo onde estava o balde afogado.
Finalmente o balde era trazido para a flor da água. O mergulhador ainda ficava dando explicações de como estava o fundo do poço, quantos palmos aproximados ainda tinha de água e se as paredes estavam sujas ou fracas, o que necessitava de um reparo. Vinham finalmente cordas para que ele subisse e chegasse à beirada do poço, são e salvo. Vinha contando a façanha e era cumprimentado até como herói e tudo o mais. Fosse a lavagem da casa ou outro grande trabalho que necessitasse de água, assim como a lavagem das redes e peças de dormir de toda a família, o poço tinha uma baixa e tanto.
As crianças de hoje nunca vão saber este mundo tão ordinário, tenso, tão simples e ao mesmo tempo tão mágico de dar banho numa casa. Da mesma forma que imagino as crianças dessa geração que nunca sentiram o prazer de tomar um banho de chuva. Correndo pelas ruas e chutado bola. Escondidas dos olhos inquisidores dos adultos. Imagino como deve ser a vida das crianças que nascem e crescem nos circos.
Elas têm de estar sempre prontas para, como se diz, arribar o pandeiro, ir embora de um lugar quando mais estão gostando de morar nele. Se me perguntassem se as crianças de hoje são mais felizes ou infelizes das crianças de antigamente diria que não sei. Cada um é feliz com o que tem e com o tempo que dispõe. Mas sempre haverá um momento de enternecimento nas situações mais corriqueiras. Sempre haverá uma situação especial e interessante na nossa vida. Até de dar banho na nossa casa.
*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras.