SOBRE O ROMANCE “HISTÓRIAS DE ÉVORA”

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SOBRE O ROMANCE “HISTÓRIAS DE ÉVORA”

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Robertônio Pessoa

Robertônio Pessoa (*)

O livro Histórias de Évora, do conhecido escritor e dileto amigo Elmar Carvalho, despertou-me o interesse desde o primeiro momento, interesse este ainda mais aguçado quando ele, num tom quase confidencial, disse-me que me encontraria naquele romance, em particular nas peripécias do protagonista Marcos. E confesso que não demorei muito para perceber que o vaticínio do amigo logo se realizaria.

O romance gira em torno das aventuras e primeiras experiências sexuais do jovem Marcos numa hipotética cidade chamada Évora, e que bem poderia ser a nossa Teresina, ou talvez a vizinha Campo Maior, nos anos 60-70-80, e para qualquer outro leitor aquela cidadezinha querida onde ocorreram os primeiros passos da vida adulta, naquela mágica e turbulenta passagem da adolescência para os primeiros anos da juventude.

Folheando já os primeiros capítulos, senti-me misteriosamente transportado para aquela atmosfera infanto-juvenil do final dos anos 70 e começo dos anos 80, período em que profundas e estranhas transformações físicas e psíquicas marcaram o final da minha adolescência, época chancelada por incontornáveis ritos de passagem e pelas alegrias e transtornos na iniciação sexual, tema este, aliás, que toma boa parte do romance.

No livro não se encontram capítulos longos, sendo composto por pequenas e bem proporcionadas unidades, que mais lembram os “splins” baudelairianos, e que, sem muito esforço e fadiga vão nos introduzindo no tempo, na personalidade, no entorno, nas peripécias e aventuras sentimentais, amorosas e sexuais do protagonista. Concomitantemente, outros pitorescos casos de época são narrados, como tragédias familiares, sociais e mesmo eclesiásticas, como o curioso “crime do padre Amaro”.

O romance tem um tom de reminiscências, talvez do próprio Elmar, mas que bem poderiam ser minhas e suas. Evocando as lições de Marcel Proust, o autor declara: “Por muitos anos, quando quis recordar certos episódios de minha vida, no intuito de aproveitá-los em algum texto literário, mormente em poemas evocativos, contemplei vetustos sobrados, velhas casas solarengas; percorri algumas praças e ruas que não haviam sido desfiguradas, que ainda mantinham os traços que vi em minha infância e adolescência. E pude relembrar certos momentos de minha vida, que já se esfumaçavam em minha memória.”

A narrativa e a linguagem do romance são bem trabalhadas, com a escolha do tom adequado e das metáforas apropriadas ao tempo, com atenção aos detalhes, numa recomposição bastante verossímil que nos remete aos gostos, costumes, expressões, gírias e trejeitos de uma época já esquecida, principalmente em face da velocidade que a história assumiu em nossos dias. Faz-nos rememorar coisas, fatos, personagens, modos de falar e de agir aos quais alegremente assentimos em nosso íntimo: “Isso…isso… era assim mesmo…era assim que se dizia..”. E tudo isso numa tessitura bem costurada, numa trama simples, sem maiores pretensões, mas composta com desenvoltura e no estilo próprio, agradável e leve do autor.

As peripécias, venturas e desventuras da iniciação sexual de Marcos são deliciosamente eróticas, onde as pulsões transbordantes da juventude, quando a testosterona alcança seus picos máximos, são inteligentemente trabalhadas, com o suspense das primeiras trepadas, animadas pela circulação quase clandestina de revistas pornográficas e as primeiras descidas aos meretrícios, e tudo numa ambiência quase vitoriana. Quem não se lembra daquelas louras estonteantes das escassas revistas suecas em coitos mirabolantes e das performances da holandesa Silvia Cristal no filme Emanuelle Tropical que assistíamos no Cine Rex.

Ao final, eu bem que poderia responder como Gustave Flaubert quando lhe indagaram quem seria a Madame Bovary do seu consagrado romance. Parodiando-o, responderia sem titubear: “Marcos sou eu”.

(*) Membro da Academia Piauiense de Letras Jurídicas, Procurador da Fazenda Nacional e escritor.

A entrada de Pádua Marques na Academia Parnaibana de Letras.

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“Tornei-me acaso vosso inimigo, porque vos disse a verdade?”

Carta de São Paulo aos Gálatas (Gl 4,16).

A recente entrada de Antonio de Pádua Marques e Silva na Academia Parnaibana de Letras é um feito que, no campo literário de Parnaíba (quiçá do Piauí), merece ser lembrado e reverenciado.

Não por ser o ingresso de um legítimo artífice das letras criativas, mas por quebrar certo regime de ingressos não literários que grassa nas academias desde que Joaquim Nabuco, em 1907, querendo justificar a eleição do almirante Artur Jaceguai, abrira as portas da Academia Brasileira de Letras a homens que não se notabilizaram na literatura, mas, tão somente, em atividades extraliterárias e não culturais, como foram também os abusivos casos de Santos Dumont e de Lauro Müller, então ministro do governo de Wenceslau Braz.

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Autor de importantes peças literárias que aguardam ocasião adequada para caírem nas graças da publicidade, Pádua Marques é, sem o prejuízo da comparação, o típico homem de letras que, ao se comportar como cronista, lembra-nos, de alguma maneira, o Graciliano Ramos de Linhas tortas (1962), e só não o é mais porque encerra em sua produção traços de uma identidade muito bem formada e definida – o que faz do mestre alagoano apenas um norte e não esteio.

Além disso, a sua escolha pelo gênero da prosa é outra marca, principalmente em um meio acostumado com poetas e, vez por outra, com cronistas. Contra essa corrente, Pádua é, antes de tudo, romancista fecundo, cujo tempero, em leves pitadas de humor e de ironia, ajuda a formatar textos simples e ao mesmo tempo ricos em imagem e crítica; é o que ocorre, por exemplo, em O libertador de Cuba, romance ainda inédito.

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As academias de letras, a bem da verdade, deixaram de ser no Brasil, ironicamente, reduto dos homens de letras. Um leve olhar, o mais superficial e sem apuro de pesquisa, constataria que as suas cadeiras são ocupadas, antes, por homens de poucas letras, embora de muitas influências (amigos, parentes…), advindos de outros campos: veem-se médicos, advogados, engenheiros, políticos, militares etc. com colaborações ao monte Hélicon ainda por vir, se é que um dia virão.

É claro que na América Latina, por questões socioeconômicas, raríssimos foram os escritores que se dedicaram unicamente à literatura, daí que esta não passasse – e ainda passe – de uma segunda ocupação, quando não para as horas livres. Quase todos os intelectuais brasileiros, a propósito, desde fins do século XIX e início do XX, eram profissionais liberais ou funcionários públicos, isso, porém, não impedia que legassem às letras pátrias obras que de alguma forma entraram para a história do país. E é dessas colaborações que falo.

No Brasil, ainda hoje, repete-se o triste e inolvidável episódio da eleição armada, para a ABL, de Mário de Alencar, então aspirante a escritor, que vencera Domingos Olímpio, prestigiado autor de Luzia-Homem (1903), justamente porque o estreante era tutelado por nada mais nada menos que Machado de Assis.

Quantos “meninos de letras” – quase ou totalmente desconhecidos! – são, ainda, tutelados e empossados por vínculos de parentesco? De reduto, de espaço sadio ao gozo das letras, as academias, assim, transmutam-se em verdadeiros feudos regidos por homens cordiais que hipertrofiam a esfera privada em detrimento da pública, para aqui lembrar a lúcida análise de Sérgio Buarque de Holanda acerca desse jeito malandro e tão brasileiro de ser.

É por razões congêneres que a vigência-instituição1 no Brasil, fortemente representada pela ABL, aos poucos tem mudado o seu centro de gravidade para as academias científicas, onde residem pesquisadores, estudiosos e mesmo escritores, cujas forças intelectivas muito têm contribuído para a literatura brasileira.

Aliás, a Academia Brasileira de Letras, há alguns anos, sabendo da importância de sua coirmã, tem se aproximado das principais universidades do Brasil, a começar as do Rio de Janeiro, e patrocinado ciclos de conferências em sua sede, um exemplo, sem dúvida, a ser seguido pelas demais, porque no seio científico é que residem, hoje, as verdadeiras pesquisas, os mais inusitados estudos e as fortuitas contribuições ao campo.

Pádua Marques, portanto, é uma injeção de ânimo para quem hoje assiste com certa desconfiança aos sodalícios de letras do país. Sem dúvidas o seu voto, em nome da literatura, como os de outros merecidos nomes que lá residem e fazem valer suas eleições, vale mais para a estrutura social das letras do que quaisquer outras vozes que reverberam uma existência amorfa e improdutiva.

Sua voz, reforço, é a voz de um romancista com histórias que localizam Parnaíba, sua terra, como espaço de excelência. Eis, por isso, a grande contribuição de Pádua Marques para as letras de Parnaíba: como escritor ajuda a formar o capital simbólico da cidade, assim também fizera século passado Assis Brasil, criando sobre e para ela histórias, mitos, universos e toda uma poesia, como os romancistas franceses de antanho acerca de Paris, a exemplo de Balzac, que dedicou uma vida a cantar e a louvar aquela que não tardou a ser considerada a própria República Mundial das Letras.

Vida longa ao imortal!

Daniel C. B. Ciarlini

1 Tomo emprestada aqui esta expressão tão cara a Luís Antonio Machado Neto, em sua referenciada pesquisa Estrutura social da república das letras (1973).