Os velhos que capavam meninos.

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Mais uma vez falo de minha infância e dela, passados mais de cinquenta anos e logo agora que há poucos dias cheguei aos sessenta anos de idade, algumas passagens me deixam feliz enquanto outras me entristecem. Mas é assim a vida. Não fosse assim, não seria. E entre as recordações de minha infância lembro hoje de dois velhinhos, dado a andarem em nossa casa da rua James Clark, no bairro de Fátima. Minha mãe sempre foi muito caridosa, visto que era da irmandade de São Francisco. E com essa virtude permaneceu enquanto Deus lhe deu saúde.

Esses velhinhos esmolers se chamavam Manoel Capim e Pedro da Mata. Não eram irmãos e nem parentes e andavam separados. Mas de quinze em quinze dias um deles batia à nossa porta pedindo alguma coisa pra levar no paneirinho de palha de carnaíba sempre colado ao corpo. Nunca soubemos se qualquer um deles tinha ou teve família, mulher, filhos e até netos, pois os dois já passavam dos setenta anos. Tinham a barba e os cabelos muito brancos e sempre cobertos por um chapéu.

E tinham fama dada pelos mais velhos de serem benzedores, curandeiros essas coisas. Tivesse alguém, uma criança com algum quebrante, mal no corpo ou gente de casa de maior tamanho com alguma doença, dor de cabeça que fosse eles curavam com rezas. Corriam a mão no mato detrás de casa e de garra de algumas folhas faziam o serviço. Como pagamento eles recebiam um punhado de farinha, arroz ou feijão, quando muito.

E quando muito, mas muito mesmo, uma moeda, dessas que minha mãe guardava entre os santos de sua devoção em seu oratório no quarto e onde menino nem era besta de passar perto.  Minha mãe dizia que um deles, Manoel Capim, ainda era seu e nosso parente distante, dessa família de Teixeira do Amaral, das bandas de Amarração e de onde veio dar Firmino, um cantador de romances que morreu tuberculoso e sem um pano pra se cobrir.

Ele, “seu” Mané Capim, gostava muito de minha irmã caçula, Maria de Jesus, tida hoje como professora Dude. Minha irmã tinha naquela época uns dois anos. E ele chegava em nossa casa, típico de quem não traz nada e vem mais pra pedir. Vinha silencioso. E nós filhos menores de minha mãe e de meu pai formávamos fila pra lhes tomar a bênção. Bença “seu” Mané Capim. Bença “seu” Pedro da Mata. Eles mascavam fumo. De vez em quando cuspiam aquela coisa nojenta no piso de tijolo ou iam até a janela e cuspiam no rumo do quintal.

mendigo2Era costume nas pessoas daquela época, principalmente mais velhas, mascarem fumo ou fazerem seu uso em cachimbos. E tinham os dois os tamancos gastos, as roupas surradas, remendadas, mas limpas. Sempre andando apoiados num cajado. Aos olhos das crianças de hoje seriam confundidos com Papai Noel. Minha mãe oferecia café. Aceitavam e se punham a conversar sobre suas saudades e as andanças por um mundo tão grande e que a pobreza achava de nunca colocar fim.

Mas antes do sol ficar rente sobre nossas cabeças eles se despediam e iam embora. Iam atrás de outra casa onde tivesse mesa mais farta e menos crianças porque era garantia quase certa de um prato de almoço pra forrar a barriga. Naquele tempo Parnaíba ainda via muita gente mendigando nas portas de casas e pelo comércio no centro de Parnaíba. Foi um tempo de muita pobreza e a maioria desses esmolers vinha do Ceará, da região do Crateús e da extrema com Pernambuco.

E nós meninos pequenos éramos de ficar cerimoniosos ouvindo de longe aquela conversa longa de meus pais com aqueles homens mais velhos. Porque não nos era dada a liberdade de querer saber o que eles levavam de tão pesado nos paneiros de palha de carnaúba ou nas sacolas de pano e muito menos passar perto e ficar assuntando a conversa dos grandes. Pra isso os mais velhos de casa tinham uma estratégia infalível pra assustar e nos manter longe. Eles diziam que Pedro da Mata e Mané Capim capavam meninos.

Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras.

Histórias de Évora e as formas dos prazeres do tempo (*)

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Histórias de Évora e as formas dos prazeres do tempo (*)

 Dílson Lages Monteiro

O que esperamos de uma obra literária? Há leitores de todos os tipos, e leituras que se prestam a muitos fins; mas quem parte para os oceanos da literatura não consegue precisar aonde as palavras conduzirão. A identificação com o tema, o maior ou o menor grau de abstração simbólica do texto, a linearidade ou alinearidade dos núcleos narrativos, os efeitos de sentido do vocabulário e da imprevisibilidade do intertextos, as vozes que se enunciam – e, claro, as experiências do próprio comandante da embarcação – conduzem a caminhos que nem sempre se consegue controlar, principalmente quando a carga associativa de percepções e representações mentais possibilitadas pelo texto é multiforme, e se insere como elemento intrínseco à própria escritura.

O que encontra ou reencontra, pois, o leitor em Histórias de Évora?

Para situar o leitor, reproduzem-se aqui duas breves passagens:

“Afagou-lhe os cabelos e as têmporas. Em seguida, seus dedos percorreram-lhe as sinuosas e bem delineadas sobrancelhas. Seguiram o contorno da boca. Pousou o côncavo das mãos sobre as maçãs do rosto em inefável massagem. Após fixá-la em profundidade, olhos nos olhos, como se quisesse lhe devassar os mais recônditos pensamentos, colheu-lhe os lábios entreabertos, ansiosos” (p.59).

 “Muito vivo ainda sinto o cheiro da cera de carnaúba, amontoada num grande depósito da Casa Machado e outros armazéns. Havia as pardas, escuras, de menor valor comercial, e a cera flor, mais clara, amarelada, de bem mais alta cotação. Recordo o cheiro acre das amêndoas de babaçu e tucum, que eram revendidas para Fortaleza, Recife e outros centros exportadores” (p.75).

 A adolescência viva e revivida, sobretudo. As pequenas cidades piauienses que foram expressão do extrativismo nas décadas de 1970 e 1980, personificadas em sua decadência econômica. São essas as motivações para que o juiz e integrante da Academia Piauiense de Letras, José Elmar de Melo Carvalho, o poeta de Rosa dos Ventos Gerais, no auge de sua maturidade literária, descortine as veredas da prosa romanesca, em narrativa que, fixando-se como documento vivencial de um tempo que sucumbiu, leve os leitores para além do retrato social de costumes e valores de um tempo, à curiosidade saltitante que os sentidos da imaginação instauram.

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Duas palavras em síntese definiriam o projeto literário de Elmar Carvalho, em Histórias de Évora: documento e imaginação. Caberia a esta, porém, pincelar, por meio do gosto pelos detalhes, em ações reiteradas insistentemente, por meio de episódios pitorescos, dramáticos ou cômicos que, desse modo, reproduziriam subjetivamente o próprio êxtase do prazer, o tema central do romance, a aprendizagem do amor, o que com maior grau de exatidão definiria seu estilo do ponto de vista temático-discursivo.

A isso se acrescentaria o viés memorialístico que salta aos olhos, a tal ponto que acertadamente escreveu em prefácio o crítico literário Cunha e Silva Filho. Resumindo Histórias de Évora, afirmou tratar-se de seu “reencontro proustiano pela memória voluntária com seus correspondentes lugares nos quais fez o seu aprendizado sexual – e por que não? – amoroso, espaço irremovível das suas mil lembranças de situações vividas, sonhadas, de fatos pitorescos, decepcionantes, constrangedores, humorísticos, melodramáticos e tragicômicos” (P.19).

Cabe, assim, lembrar o que disse Donaldo Schiler sobre o trabalho imaginativo dos romancistas:

“Primeiro há fragmentos, lembranças, experiências, textos. Quando estes se organizam, desencadeia-se o trabalho da imaginação, e desponta o autor como fundador do universo imaginário. Não favoreceríamos a compreensão do romance, se equiparássemos o imaginário a um supermercado de pensamentos, frases buriladas, paixões. A imaginação ordena as partes num todo móvel, aberto, repleto de indeterminações: o imaginário.” (p.73)

É essa dimensão perceptual e cognitiva, alicerçada na liberdade, que as associações mentais constroem. Por isso,  apresentam-se expressivas as palavras de Schiller ao esclarecer:

“Todos os sistemas de palavras e símbolos constroem o universo imaginário. Fora do imaginário fica o real, ao qual não temos acesso direto. O imaginário nos permite que dele nos apropriemos e com ele convivamos. A diferença do imaginário artístico reside na liberdade resoluta, visto que não está sujeito ao rigor da verificabilidade”. (p.73)

 Em Histórias de Évora, a imaginação é ditada pela enunciação do universo do desejo masculino em criar a ambiência para que a libido seja tematizada. Seguindo esse raciocínio, são abundantes as alusões a coxas, a seios, a lábios em cenas de aberto erotismo, quando não a narração do ato sexual em si em sentenças de léxico despojado. Também frequentes as referências ao funcionamento dos cabarés e aos costumes que lhe eram comuns.

Do ponto de vista formal, Histórias de Évora é um texto comportado. O próprio autor faz questão de enfatizar: “Deixo logo bem claro que não desejei fazer obra de vanguarda. Quis apenas contar umas histórias, pois sempre entendi que um romance ou conto deve narrar algo. Contudo, não quis apenas ser um simplório contador de histórias ou “causos”. De fato, embora não se predisponha a romper com a tradição literária, não lhe faltou inventividade, considerando-se a estratégia empregada para um maior ou menor distanciamento do objeto discursivo.

Assim é que Marcos Azevedo, o protagonista, estudante secundarista, amante dos livros e da arte, que ao longo do livro se transforma em um septuagenário, declaradamente um “alter ego” do autor, propõe-se a narrar suas descobertas amorosas e a ação do tempo sobre hábitos e espaços, a partir de duas instâncias enunciativas, com foco narrativo em primeira e terceira pessoa. Demarcam-se, pelo rompimento com a linearidade do ponto de vista, não apenas duas idades cronológicas, mas também um distanciamento em relação aos acontecimentos que os tornam presentes, cristalizados pela marca da lembrança.

Para enfatizar que o tempo emergente na literatura é um tempo social, um sentido coletivo, Luis Alberto Brandão e Silvana Pessoa, em clássico estudo sobre o sujeito, o tempo e o espaço ficcionais lembram que se costuma pensar no tempo em duas perspectivas. “Uma perspectiva objetiva que associa, ao tempo, aspectos cosmológicos, físicos (o tempo como parâmetro dos movimentos descritos pelos astros celestes ou como medida do envelhecimento dos seres). E uma outra perspectiva que sugere que há, sempre, uma percepção, uma consciência do tempo – perspectiva que torna possível se falar de tempo psicológico, subjetivo, ou de tempo imaginário”(p.52). Estariam as duas perspectivas inter-relacionadas, porque são modelos de percepções, exteriores a elas, criando, dessa maneira, a referência e a interpretação.

Cria Elmar Carvalho a dimensão de um tempo imaginário, assinalado pela imprecisão (não seria inexata a linguagem do corpo?) de uma forma particular de entretenimento, ao se remeter à idade cronológica do personagem-protagonista Marcos e às ações que se relacionam de modo individual à cada fase das vivências desse  personagem. Cria um movimento que traduz as transformações do corpo físico e da geografia social e humana. Nessa tarefa, cada capítulo funciona como uma digressão a aspectos particulares da memória, que, não obstante pareçam desconectados em algumas passagens, vão gradativamente estabelecendo o vínculo causal, responsável não somente pela unidade temático-discursiva, mas também, e sobretudo, pela dimensão estética do texto. Ela é alcançada pelas descrições, em detalhes, de aspectos culturais sobre um “modos vivendi” específico como elemento de sociabilidade, o mundo dos antigos cabarés. Para atingi-lo, emprega a repetição intensa de episódios relacionados à descoberta do sexo, realçando-lhe os significados.

Nesse processo, o narrador leva o leitor, independente do foco que escolhe para contar, a questionar o que é o belo, a sentir as pulsações da adolescência sobre o corpo, a vasculhar a ousadia e os temores da frequência às casas de sexo, a conhecer e relembrar os rituais de comportamento que antecediam ao ato sexual, a mergulhar nas curiosidades, satisfações e decepções despertadas pelo amor. Conduz, ainda, o que é enfatizado pela voz que conta como fundamental para a narrativa, ao universo de Évora, uma fusão de Parnaíba e Campo Maior, conforme diz o autor, em nota de advertência.

Aqui está retratado o perímetro central de ambas as urbes, em sua atmosfera de encanto arquitetônico:

“Na Rua Grande, (…) havia os sobrados mais antigos e os luxuosos chalés e palacetes de seu apogeu comercial, da época áurea do extrativismo, da industrialização do pó da carnaúba, da maniçoba, do jaborandi, da oiticica, do algodão e do óleo de babaçu” (P.75)

 “Velhas casas solarengas, vetustos sobrados, antigos casarões em estilo colonial (…) a 150 metros da matriz (…) a Zona Planetária” (p.76)

 E assim se constroem as Histórias de Évora. Histórias de prazer, ruínas e sonhos, que a marca indelével do tempo e da oralidade vai tratando de passar adiante, pelo ouvido das portas e janelas e de textos que procuram traduzir a alma e a essência do que permanece para sempre. A alma e a essência de uma gente. Ouçamos o que portas, janelas e desejos têm a dizer…

(*) Palestra pronunciada pelo professor, escritor e poeta Dílson Lages Monteiro no auditório do SENAC, em Campo Maior, no dia 07/07/2017, por ocasião do lançamento de Histórias de Évora, em cuja solenidade também foi lançada a obra A Menina do Bico de Ouro, da autoria de Raimundo Lima.