A Farinhada

* Por Pádua Marques (cadeira nº 24 da APAL)

        Entre as lembranças de minha infância eu tenho uma em particular e que guardo com muita fidelidade e carinho. Aquela de ter assistido a uma farinhada. Realmente é um momento único, principalmente pra um menino da cidade e que se embrenha no mato pra ver e sentir como vivem os homens na sua forma mais primitiva. Esta lembrança agora me vem à tona quando estou quase alcançado os sessenta anos e já me dou conta de que está na hora de reunir as memórias.

        Eu devia ter naquela época uns doze pra treze anos de idade. Havia passado de farinhada1ano na escola e meu presente foi aquele passeio na casa de uns parentes, uns primos que moravam no interior do Maranhão, na região dos Araioses, fronteira com o ainda hoje povoado Barra do Longá no lado do Piauí. Este lugar distante, umas sobras de terra, se chamava São Paulo e pertencia, salvo engano, a um homem tido como muito rico, dono de carnaubais, Mariano Quaresma. Saímos de Parnaíba na carroceria de um caminhão no início da tarde de uma sexta-feira.

         Eu vou encurtar caminho não contando os pormenores da viagem de pouco mais de três horas entre Parnaíba e a entrada na casa de meus anfitriões, naquele meio de mato nas brenhas do Maranhão. Posso dizer hoje que a impressão que tive desse pedaço de terra foi e ainda é de contemplação. Eu nunca havia visto a pobreza fora de casa. Eu nunca havia visto os campos, as imensas distâncias sem cruzar com um vivente. Os olhos tristes de uns meninos no meio do caminho voltando da caça. E entender como pode o homem, suportar esta solidão que faz ele ser calado e às vezes triste.

         Naquele tempo as estradas eram ruins e os veículos mais pesados e lentos. Daí ofarinhada2 tempo de viagem ter se encompridado além da conta. E naquele caminhão aos solavancos com a carroceria coberta de lona, iam homens, mulheres, crianças, velhos. Voltavam da Parnaíba, cidade grande, como ainda hoje acontece, depois de fazer compras, procurar um médico, receber dinheiro, essas coisas. Levavam na bagagem aqueles mantimentos que não tinham nas quitandas de Buriti dos Lopes ou da Barra do Longá: açúcar, café, arroz, fumo, querosene, fósforos, remédios.

        Mas esta minha primeira viagem e sozinho pra casa de estranhos me abriu as portas pra muitas coisas. Entre elas a capacidade de ver e admirar as miudezas, as coisas simples e de depois contar tudinho do jeito que vi. Mas a farinhada naquela manhã de sábado começou com a chegada dos homens e dos animais com a mandioca. Pra mim, menino de cidade, eles apareceram assim de repente no canto do cercado da dita roça de casa. Os animais, uns jumentos muito magros, coisa de uns três, traziam no lombo a carga de mandioca.

         Na casa de farinha estavam já as mulheres descascando a mandioca. A mandiocafarinhada3 era triturada numa pequena moenda, o caititu. Depois a massa mole era levada pra umas prensas, uns troncos roscados pra retirada da água. Outras mais adiante estavam tratando junto com uns homens suados e de cabeça coberta por chapéus, a secagem da massa. Outras mais adiante trabalhavam a goma. Umas mais velhas e outras mais novas, sempre numa conversa sem fim, contavam passagens do dia e de suas vidas enquanto descascavam mais mandioca.  E encantou a mim aquele forno, em formato de um poço e uma boca por onde eram jogados os troncos pra manter aquecida uma chapa de ferro onde era feita a farinha. E aquele homem na beira e rodeando o forno o tempo todo com uma peça de madeira, que mais lembra um rodo de secar banheiro, movimentando a massa quente pra cá e pra lá.

        E eu ali olhando tudo. Calado e curioso entre aquela gente alegre com o pesado trabalho de fazer farinha, beijus, beijus com coco ou gergelim, tapiocas. E a goma, aquele produto mais refinado daquela fábrica rude e barulhenta indo depois alcançar o preço de ouro no mercado.  Do ainda menino, agora ficando rapazinho engrossando a voz e o talo da pinta, ficou uma impressão fantástica daquele lugar onde todos têm uma função.

        farinhada4 Mas entre aquela gente rude e conformada com aquela vida de fazer farinha ficou em mim uma impressão ruim pra um menino de cidade grande. Não havia mulheres bonitas nem novas entre as mulheres que estavam ali naquela lida. Eram muito feias. As mais velhas cheiravam a azedo. Não tinham as unhas nem os cabelos bem cuidados como as mulheres da cidade. Os vestidos eram de tecido ordinário. As mais novas estavam sempre rodeadas por crianças encardidas, catarrentas e choronas. E essas crianças segurando um pano imundo ou chupando o dedo e esfregando os olhos.

        Mas pude depois desta experiência toda verificar que aquela gente tinha um senso de trabalho e de organização impressionantes. Havia uma hierarquia e uma importância entre as pessoas que estavam trabalhando. E eles me trataram tão bem e com tanto amor e cuidado com o pouco que tinham. Quando voltei pra casa naquela manhã de segunda-feira, trouxe na bagagem, além de muito beiju e farinha, um novo homem dentro de mim e um passarinho bigode na gaiola.

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