Relógios de papel

* Por Pádua Marques

Entre as lembranças boas de minha infância, uma eu tenho e de certa forma conservo alguns traços e atitudes até hoje. O gosto e a admiração por relógios. Eu tinha uma tia aleitura5velha, de nome Josefa, única irmã de meu pai, que gostava muito de ler. Desde livros de romances, poesias de Castro Alves, biografias, cordéis, fotonovelas e as famosas Seleções do Reader’s Digest. Ficava a ler todos estes livros e revistas num tempo em que a diversão e a informação toda vinham no papel ou, no máximo por uma única emissora de rádio.

Mas entre as leituras de minha tia no correr da tarde após o almoço e sentada numa cadeira de pano, que antigamente se chamava de preguiçosa, ela ficava lendo as fotonovelas das revistas Grande Hotel, Capricho, Ilusão, Contigo, Sentimental, Sétimo Céu, Romântica e as de notícias como a O Cruzeiro. Vinham depois as biografias como a de dom Felipe Conduru Pacheco, maranhense como ela e depois bispo de Parnaíba, ou poesias, no volumoso e bem cuidado Espumas Flutuantes, de Antonio de Castro Alves.

aleitura4Minha tia, dada a sua condição de moça velha, era muito ranzinza. Nunca casou e nem teve filhos. Tinha nos filhos e muitos do irmão Antonio, meu pai, as crianças necessárias para lhe obedecer nalgum recado ou compra de alguma necessidade. Mas se era zangada e resmungona, por outro lado era generosa com algum sobrinho que lhe obedecesse e lhe prestasse esses pequenos serviços. Custei a ser dela o predileto dos sobrinhos. Talvez nunca tenha sido. Mas tive o privilégio de ser aquele a quem confiou a leitura de seus livros e revistas.

aleitura3Esta particularidade, este contato, de início tímido, feito assim como o encontro de um índio vindo da mata com um marinheiro saído das caravelas, me foi como uma chave secreta para o mundo que abracei quando adulto, a literatura. Mas não é de literatura que vou falar neste artigo para o Natal. Vou falar é de minha paixão de criança por relógios de pulso, daqueles bem dourados e delgados que via sempre nas páginas das Seleções do Reader’s Digest. Relógios lindos e imponentes, da Patek Philippe Geneve e o elegante Mido, sonho de consumo de qualquer homem. Naquele tempo os japoneses ainda não haviam entrado em cena com seus relógios populares.

Eu recortava daquelas revistas mais velhas e já fora de uso de leitura os relógios com um jeito de que pudesse colocar no braço. Quando era impossível fechar eu colava um papel maior e mais grosso, tipo papelão, por baixo e depois recortava fazendo com que a pulseira tivesse condições de abraçar o punho. Eu tinha vários deles. Desde aqueles com pulseiras de couro até aqueles de aço. Quer dizer, de papel, mas na minha imaginação eram como se fossem de aço ou folheados a ouro. Depois saía brincando de ser um homem importante.

Os à época reclames de relógios eram pra mim uma coisa extraordinária! Meus olhos brilhavam só de ver aqueles relógios lindos, de ouro maciço com pulseiras de couro legítimo ou de aço. Outros tinham um tipo de pulseira elástica. E tinham aqueles pra mulheres, também muito lindos e refinados. E até hoje este fascínio que me levou a ter vários relógios de papel guardados entre os meus poucos brinquedos, fez com que nunca deixasse quando adulto de usar relógio. E mais já de idade passei a comprar e colecionar relógios de parede e os de cima de móveis.

Grandes, pequenos, médios, em vários formatos, os de algibeira, carrilhões, os com caixa de madeira. Enfim, essa minha obsessão por relógios vem de longe. Porque independente de qualquer saudade de criança, daquela criança que fui um dia, pra mim o relógio tem essa magia de nos controlar e nos deixar com os pés no chão do tempo.